Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

sexta-feira, setembro 30, 2005

Paquerar ou acasalar com nossos objetos de estudo?

Qual é a relação que o pesquisador constrõe com seus objetos de estudo?
É a mesma relação que ele estabelece com o mundo e com as pessoas com as que vive.
Eu, por exemplo, gosto de me lembrar da afirmação de Juan Miró: "Eu pinto o quadro até um certo ponto, depois ele se pinta sozinho". Certo amigo da física me falou um dia da teoria do "átomo amanteigado", excelente imágem para descrever aquilo que se persegue e não conseguimos apanhar.
Nossos objetos de estudo são assim, átomos encharcados de graxa, telas cujas formas andam sozinhas, coelhos fugitivos. O pesquisador pode estabelecer uma relação mais o menos autoritária ou mais o menos respeituosa com seu objeto de estudo. Quando se é demasiado normativo com aquilo que estudamos as "profecias que se autoconfirmam" materializam-se em forma de "objetos pre-construidos". Quando se é demasiado anárquico aparecem objetos de estudos acomplexados pela excessiva subjetividade.
Prefiro uma relação anarquica com meus objetos de estudo, aliás, prefiro não ter objetos de estudo, melhor é ter companheiros de viagens...aos que você respeita, com os quais você não perde a ceremônia; com licença, desculpa, por favor...
Entretanto, o objeto de estudo-companheiro de viagem pode deixar-te sozinho num momento qualquer do percurso, pode acassalar com outro pesquisador, pode desistir do traje que lhe emprestaste, pode almoçar com o vizinho, pode te largar para sempre ou te deixar na mão na porta da igreja, e ai o pesquisador traido nunca mais consegue conquistar um lugar de honra acadêmico para aquele a quem dedicou incondicionalmente suas melhores horas.
Nesses casos eu recomendo umas pingas. Os objetos de estudo são assim mesmo, eles só olham para seus umbigos. Um conselho; objetos de estudo não conseguem amar cientistas fracassados.
Na academia o pesquisador desconfia do fluxo das coisas, se esforça por mentir o mínimo possível, desprovido de estratégias para cativar seu objeto de estudo, o recompõe como uma dócil matéria morta cuidando que suas deduções excessivamente torpes não lhe restrinjam o campo da visão. Suas obras contam com uma essência de imortalidade tolerando bastante bem a passagem do tempo. Os objetos construídos parecem defuntos. A ciência se mostra às vezes um jogo cheio de mistérios em que o cientista lhe consagra uma parte preciosa da sua vida. A realidade permanece inatingível e confusa enquanto as condições financeiras para o trabalho intelectual não se realizam, então, o olhar subitamente iluminado do pesquisador oculta-se.

beijos a todos

do Eladio Oduber.

Paráfrases desonestas de Marguerite Yourcenar em Memórias de Adriano

terça-feira, setembro 27, 2005

Picasso, pesquisa e as facas amoladas


Picasso tinha, além de inúmeros talentos, uma enfunada autoestima. Antes de conquistar a fama, um dia, pediu a sua esposa, François Gillot, que trocasse o desenho que fez num guardanapo por um quilo de carne na quitanda do seu quarteirão. Talvez Picasso nunca sentiu-se "imperfeito" assim como se sentem as pessoas devotadas a profissões inefáveis e eternamente inacabadas.
A sospeita de não poder materializar os desejos nos mortifica. A ciência como a política se alimentam deste sentimento, ambas prometem um futuro em que poderemos concretizar nossas utopias. Até lá, nossas vidas permanecem sem acabamento.

Podemos elaborar melhor nossas respostas e aproximar-nos das facas amoladas. Podemos ter boas perguntas e bons amigos ou manternos longe de dois vícios: o de não tomar partido e o de tomar partido, recuperando anseios que são comuns a muitos de nós, por exemplo, o senso de "tribalidade". Tenhamos piedade do nosso ser científico, virando dois...um indo na frente espantando os medos e outro atrás sem falar, modificando o própio campo magnético, em comunião com o pathos, com aquilo que nos arrasta e sobre o qual não temos controle. Quase como uma esquizofrenia do bem.

Assim poderemos fazer e viver a pesquisa.

beijos a todos do Eladio Oduber

Conferir: MAY Rollo. A procura do mito. São Paulo: Manole , 1992

Demolições, esperas, descobertas



"O que o homem tem de mais profundo é a pele"
Paul Valery

Querido Eladio, quando vç fala da "compaixão" com os materiais construtivos, penso no pavor que sentia de garoto frente a atrocidade de esses materiais (aço, pedra, agua) ser sometidos ao frio, o calor ou a pressao extremas.
Mais a pior aberraçao provenía do fato de ser confinadas, recluídas, pela eternidade, no interior das paredes, dos tetos, no fundo do solo escuro das cidades.
Penso na expectativa criada nas demoliçoes, na espera de que alguma coisa inesperada apareça e seja dada a luz.
Habitar -uma cidade, uma casa, uma relaçao íntima-pressupoe a necesidade desses confinamentos fundacionais previos.
E curiosa a imagem da cidade "lisa" que perceberam os personagens de Kafka, é o mesmo efeito de fascínio que produz a cultura global sob a imagem do mundo:um sitio sem obstáculos incomodos, uma superficie lisa, homogénea, esterilizada, optimizada para o fluxo libre e ultraveloz de informaçao e bens materiais
Basta experimentar NY como habitante global para sentir que a cidade e sua, en quanto o fluxo passa diante de voçé a ilusáo de apropiaçao é inmediata

Federico Percibal - Uruguay

sábado, setembro 24, 2005

A Ponte Brooklin não pende delicadamente sobre East River (1)

Quando terminei a leitura de América de Franz Kafka, lembrei-me de uma gravura feita pelo meu amigo "caraqueño" Edgar Moreno. Ele tinha chamado esse quadro de "o dia em que os cachorros saíram de Nova York" : era uma gravura pequena, de cor verde escuro, e em cima da ponte de Brooklin um monte de cachorros indo embora e "dando uma banana" para a cidade.
A visão panorâmica das coisas constrói uma ilusão que se desmancha na proximidade.
Na América de F. Kafka, há uma visão aclimatada na escala cotidiana da existência.
As próprias personagens do Kafka foram num momento pegos pela idéia de uma cidade enorme e lisa. Uma cidade onde os carros eram silenciosos e parecia que não passavam pela ponte Brooklin que "pendia delicadamente sobre East River". As imagens que hoje fazemos das cidades são produto de um fato tecnológico; o avião.
Os imigrantes de Kafka observam estes elementos desde um lugar periférico, a cultura que produz bens ministra sua força centrífuga a quem não os pode consumir. A sociedade da acumulação também é a sociedade dos peregrinos, do desemprego, contaminação, alcoolismo, exploração das mulheres e das crianças, e lutas operárias.
Os cachorros da gravura do meu amigo Edgar Moreno provavelmente tinham um sentimento kafkiano sobre Nova York. Os materiais de que está feita a ponte Brooklyn sofrem da mesma tensão dos imperativos da cultura do aço. A um tempo atrás, Carlos Oduber, me ensinou a ter certa compaixão dos materiais construtivos, em verdade as edificações da cultura industrial imploram para descansar. O concreto armado e o aço são tensos desde sua origem, por isto é difícil acreditar na aparente delicadeza e tranqüilidade da ponte Brooklyn sobre East River.


Eladio Oduber


1 Dedicado ao meu irmão brasileiro Antônio Carlos Bigonha músico admirável e procurador virtuoso.

quinta-feira, setembro 22, 2005

O sarcófago e a pesquisa

Pesquisar também está relacionado com “pinçar” objetos do fluxo caótico da vida e dar-lhes nomes, normatizá-los, dar-lhes estabilidade. Daí que a palavra “nomear” provenha do nomos que historicamente se opõe a physis. Em outras palavras, a dicotomia cultura (expressão do nomos) versus natureza (expressão da physis) está no centro do núcleo filosófico das descobertas. Ao final, a ciência é um produto cultural, produto do nomos e não produto da natureza ( physis). Também as normas são fatos sociais produzidos pela cultura. Creio que Bruno Latour inspirou-se na idéia de “objetivação” para falar da estabilização das caixas pretas. A etimologia da palavra sarcófago, do grego sarkophágos (carnívoro), de sarx (carne) e phago (comer), oferece uma interessante metáfora sobre a voracidade das caixas-pretas (descobertas estabilizadas).

Eladio Oduber

Conferir: BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985. ( introdução) e LATOUR,B. Ciência em Ação. São Paulo: Editora Unesp,2000.


quarta-feira, setembro 21, 2005

Método paranoico-crítico


Salvador Dali desenvolveu uma obsessão pela “mantis religiosa”, esse insetinho verde que conhecemos como “louva deus”. Ele fazia uma relação entre esse inseto e um famoso quadro de Millet: o Angelus.

Esta é a razão pela qual pintou cinco quadros baseados nessa obra ("Atavismo ao Crepúsculo", "Angelus arquitetônico de Millet", "Reminiscência Arqueológica do Angelus de Millet", "Gala e o Angelus de Millet antes da Chegada Iminente da Anamorfose Cónica" e "O Angelus de Gala")” .

Já na infância, Dali sentia um grande desconforto com a imagem destes dois camponeses que, sem razão aparente, meditavam na solidão de um campo. Foi somente em 1962 que conseguiu, depois de muita insistência no museu de Louvre, convencer o curador para radiografar o quadro descobrindo um objeto retangular parecido com um caixão no meio dos dois camponeses. Numa pesquisa posterior das cartas de Millet, Dali descobriu que quando Millet estava pintando o quadro, um amigo, critico de arte o desencorajou a trabalhar sobre este tema lúgubre e até fora de época. O quadro era originalmente o enterro do filho de dois camponeses cujo caixão está tampado por várias camadas de pintura. Foi este tipo de sensibilidade que Dali chamou “método paranoico-critico”

abraços do Eladio

segunda-feira, setembro 19, 2005

Presente da nossa amiga Lenise Sampaio

Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isto se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que ultrapassamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: sapientia: nenhum poder, um pouco de saber; um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível.
Roland Barthes

La vida te dá sorpresas


Quando na volta de uma esquina me dou de cara com os "dados" gosto de fazer uma leitura, ao mesmo tempo, prazerosa e livre. Uma estratégia que gosto de denominar como “rapto seguido de sedução”. Contrária à técnica de Anselm Strauss que “tortura” os dados até eles delatarem os segredos. No meu caso, gosto de conviver com eles em acasalamento e “seduzi-los” até se entregarem. Cuidando de que a beleza dos dados não vire cinza e minha curiosidade por eles não vire pó. Metáfora esta, cara a um conhecido escritor que minha falta de memória não me permite homenagear.

Eladio Oduber

Imagem:
www.alvaroizurieta.com.ar

O começo 19/09/05

Estaremos, a partir de hoje 19 de setembro de 2005, falando sobre a paixão pela pesquisa e outras infâmias. Sejam estas acadêmicas, de mercado, institucionais ou simplesmente do cotidiano.

Abraços do Eladio e Cinthia (sociólogo e antropóloga)