Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

quarta-feira, fevereiro 11, 2015

Os desejos incestuosos dos diretores de cinema

Orestes, filho de Agamenon e Clitemnestra, intera-se, na vida adulta, que seu pai foi assassinado num complot que a sua mãe e seu tio Egisto realizaram quando ele apenas era uma criança[1]. Quando Orestes atinge a maioridade vinga a morte do seu pai matando a Clitemnestra. Orestes fica então louco. Robinson Jeffers[2] cria em 1925 uma versão do monólogo do Orestes quando volta para Micenas depois de ter vagado pela floresta, “torturado de visões”. Estas palavras ele profere em resposta a Electra, sua irmã, que na ocasião propõe-lhe casamento:

Tive uma visão, nós nos movíamos nas sombras;
Tudo o que fizemos e sonhamos
Era recíproco; o homem perseguia a mulher,
a mulher agarrava-se ao homem; reis e guerreiros
combatiam-se na escuridão, todos amavam
ou lutavam interiormente, cada qual perdido,
buscava os olhos de alguém que o louva-se,
nunca os seus, sempre os alheios.
Voltando-se, viam apenas um homem de pé no começo, ou
Olhando para diante, outro no fim; ou para cima,
Homes no céu brilhante, correndo e banqueteando-se.
A estes chamam deuses...
E, no íntimo, mil desejos incestuosos...
(Robinson Jeffers apud MAY:1991 p. 109)

A história do Orestes como um ponto de partida nos permite imaginar que o olhar do diretor de um filme pode ser amplificado por dois dispositivos: O primeiro, a câmera, que transcende sua subjetividade, que tem “sede de realidade”, sede histérica de “verdades” e “ficções”. E o segundo. A tela; com “mil desejos incestuosos”, “procurando os olhos de alguém”. Nunca os seus, sempre os alheios. A tela é também o grande olho do diretor e não somente a câmera como normalmente se pensa. Entretanto, na projeção sobre a tela o olho do diretor está sempre à procura de outros olhos que deseja encontrar? Nem sempre.
No cinema, assim como em outras artes, o criador que toma a direção do que o “grande público” espera, estabelece uma comunicação “incestuosa” com seu receptor. Dificilmente “sangue e genes novos” entram nas veias da arte que é feita para agradar.
Entretanto, o grande olho da tela que se inclina na direção de outras subjetividades, que se apaixona “voltado para fora” isto é, o cinema que não é feito para a diversão do grande público, entende dolorosamente, como já dizia André Breton, que “o principal inimigo da arte é a vida”. Compreende que os membros do próprio clã hostilizam a criação por que temem a peregrinação do “amor” voltado para longe dos muros da aldeia. Robert Stam no seu livro “Introdução à teoria do cinema” lembra as palavras que em 1958 foram ditas pelo Godard: “estamos sempre sós”. Esta frase resume o preço pago pelo diretor cuja tela procura seus próprios olhos e não os alheios.
O cinema, afastado da relação “incestuosa” com seu público ganha profundidade estilística. Ausência ou presença de estilo diferencia um filme de outro. Entretanto, “estilo” não é uma categoria metafísica. Estilo significa síntese e mudança ao mesmo tempo. Sem estes dois elementos qualquer cinematografia ou qualquer arte torna-se ingênua... Ou melhor, torna-se inerte. E qual é o preço das mudanças estilísticas? Qual o preço de superar a imobilidade de estilo?      
            Muito provavelmente a solidão. Ou ficar com tão pequeno contingente de público que a produção não convença seus potenciais patrocinadores.
Então esconderá alguma verdade aquele pensamento - que faz parte do senso comum cinematográfico - de que o filme “vai ao encontro do seu público”?
Pensemos sobre profundidade estilística, ou sobre diretores, ou sobre filmes que decidem caminhar afastados do público.
O espectador. Aquele elemento imponderável que enche ou se ausenta das salas por motivos “quase” inexplicáveis e que provavelmente se identifica com o que está sendo projetado por que quer entender quem ele é antes de morrer, a semelhança do soldado agonizante no quadro do Filoxeno[3].

PS: Dedico este post aos meus admirados alunos de métodos no curso de cinema IESB- Brasília: Alanna Pinheiro Amorim, Sandro Villanova, Cássio Oliveira, Pezão, Teninson... eles ajudaram a objetivar estes pensamentos . Obrigado menina obrigado meninos. 

[1]História de conflito humano escrita por Esquilo na Grécia antiga.
[2] Poeta norte-americano (1887 – 1962)
[3] Refiro-me ao quadro do pintor grego Filoxeno de Erétria  (435 a C - 380 a C) onde foi eternizada a batalha de Issos em Pompeya.