Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

quinta-feira, junho 15, 2006

Letter to indifference

Prezados Alunos,

Hoje fiquei olhando atentamente para uma pintura de Edgar Degas. Quando ele fez seus quadros, a arte da fotografia teria apenas uns vinte anos de existência e talvez, por isso mesmo, este pintor conseguiu reproduzir imagens em movimento com uma maestria insuperável.
Tentei imaginar qual seria o recurso que Degas usou para poder congelar nas suas lembranças imagens tão belas e realistas sobre os ensaios das dançarinas. Possivelmente, foi o mesmo recurso que J.S. Bach utilizou para decorar as harmonias dos órgãos tocados nas igrejas de Arnstadt para depois transcrevê-las na solidão do seu quarto.
Olhar como Degas e escutar como Bach. Existe somente um único combustível por trás destes gestos: paixão. Um sentimento que os próprios coetâneos não chegavam a entender. Com certeza as histórias destes artistas como as de tantos outros estão impregnadas das “projeções” naturais dos seus biógrafos e admiradores. A humanidade inventa seus mitos, porém nunca sabe as razões pelas quais os inventa. O DNA dos nossos espíritos está criptografado com os valores destas mitologias. Hollywood, por exemplo, ergueu-se como império manipulando e recriando nosso DNA em menos de um século de história. Pouco tempo se comparado com o tempo que demorou a formação do terror ao incesto criado, segundo Nietzsche, no exercício histórico da lapidação de cabeças de quem ousasse transgredir tal interdição.
Feliz ou infelizmente, Degas e Bach já não fazem parte da estrutura genética das nossas almas. Há muito tempo a luta pela sobrevivência imaterial apagou estas poderosas colunas simbólicas da nossa cosmogonia. Quem são então os nossos heróis?
Talvez o problema seja este, prezados alunos: meus heróis não são os vossos heróis. Ou melhor, não importa mais a “quem” vocês admiram e sim “o que” vocês admiram naqueles que são seus heróis. Eu, por exemplo, me emociono com a intensa paixão com que Degas olhava para as cenas das dançarinas ensaiando ou a poderosa atenção com a que Bach escutava as harmonias das músicas sacras para memorizá-las. Há alguns anos a polígrafa Judith Cortesão, na minha presença, enumerou de cor mas de vinte nomes de tribos indígenas do Brasil e de América Latina e eu lhe perguntei como fazia para guardar tantos nomes. Ela me respondeu com uma pergunta: “você não lembra dos nomes das suas namoradas?”
Dos meus heróis admiro a paixão com que abraçaram suas causas... a paixão não no sentido grego – pathos - de onde deriva esta palavra ou no seu primeiro sentido latino passio ambas raízes significando sofrimento, e sim no último sentido histórico, aquele que foi dado por Cícero: aquilo que perturba o ânimo. Aquilo que provoca uma tempestade interna, variações, alterações, ventos contrários, encrespamentos.
Este clima de perturbatio animi esteve muito presente nas nossas aulas porém por razões indesejáveis. Razões mínimas, as vezes mesquinhas e infantis que não vale mais a pena lembrar.
Contrariamente, o que eu senti ao longo de quase cinco meses de convivência foi a falta de paixão isto é, “apatia”, ausência de pathos, de tudo aquilo que arrasta a alma na direção das coisas que justificam a existência.
Sinto-me como aquele amante não correspondido; azar do apaixonado, o que pode - se fazer nesses casos? Nada.
Nada resolve a paixão não correspondida, nada há que reclamar, nada há que dizer. A paixão não acolhida retira-se, vá tocar sua lira noutras terras.
É preciso um self vigoroso - isto é, um forte senso de identidade pessoal - para relacionar-se plenamente com essa realidade, sem ser por ela absorvido. Pois, sentir verdadeiramente este silêncio e o caráter inorgânico da tranqüilidade apática acarreta verdadeira ameaça. Não é bom entregar-se ao desespero das distâncias ou aos abismos que separam nossas mitologias. Eu prometo que esta sensação de desconforto com certeza há de desaparecer...

PS: Se, por ventura, algum aluno não entendeu minha carta, eu quero dar o mesmo conselho que Maiakovski deu a um operário que não entendeu a sua poesia: “por favor, estude um pouco mais”...

Eladio Oduber

Imagem: Monge / Eladio Oduber – 199?

Conferir: BODEI, Remo. "Paixão e Razão" In:
De MASI, Domenico, PEPE Dunia, As palavras no tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

PS: de baixo para cima, da linha 04 à linha 10 fiz uma paráfrase desonesta do Rollo May no seu livro: "O homem à procura de se mesmo".