Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Templos, relógios, escovas de dentes, beijos apaixonados e questionários in loco



Nossa relação com o mundo prático não é tão objetiva como parece. Nunca ficamos na frente do guarda roupa de olhos fechados, pegamos a primeira peça e a vestimos. As roupas, os lugares, os objetos envolvem um forjar do sujeito. (isto é antigo mais é saudável lembrá-lo desta maneira).

Os poetas gostam de chamar este “forjar” de “epifania”, os antropólogos preferem a palavra “hierofania”. Duas palavras que descrevem nossa religiosidade cotidiana e que vão a reboque do sufixo fanus – templo. Aqui nesse lugar / momento acontecem coisas separadas do mundo cronológico. Chronos definido como “... a extensão de tempo matematicamente divisível [...] uma série quantitativa pura de medidas iguais”.

Nesses curiosos e infinitesimais segundos em que escolhemos a roupa pode-se dizer que visitamos mentalmente nosso templo particular. Um amigo trompetista olhando para o teto da casa que está construindo me confesou uma hierofania : ” pensar que cada uma dessas telhas são notas musicais que eu toquei...”

Quando decidimos infinitesimalmente visitar nosso templo abandonamos o chronos e somos abraçados pelo kairos “tempo para decisões fatais, os momentos climáticos que se alternam com espaços de tempo durante os quais nada parece acontecer”

Um exemplo: A experiência desastrosa do amor não compartilhado sendo uma experiência comum a todos nós, é uma entrada involuntária no kairos. As coisas mais familiares fragmentam-se causando-nos horror (Langer).

Então, lançamos mão das analogias mais próximas. São elas que nos orientam nas experiências caóticas. Comer, escutar música, limpar podem ser analogias próximas.

Sendo didáticos e, ao mesmo tempo, enjoados podemos dizer que o chamado “mundo objetivo” é uma analogia da analogia da analogia. uma consolidação de “archi-analogias”.

A alternância entre kairos e chronos ou entre burocracias e hierofanias explicam de forma geral a alternância entre o beijo apaixonado e o escovar de dentes, entre os insights das técnicas projetivas e a estatística descritiva o entre a moderação de um grupo focal e a aplicação de um questionário de perguntas estruturadas in loco.


Abraços de Cinthia e Eladio

PS: Este texto vai com especial carinho ao amigo, e grande pesquisador, Zeca Teodoro, com o seguinte esclarecimento: Amigo Zeca, eu sou também muito fã da pesquisa “quanti”. Eu sei que se não escovamos os dentes não podemos dar beijos apaixonados.

Conferir:

IANNI, Otávio. Teoria da estratificação social: leituras de sociologia. São Paulo Editora Nacional, 1973
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1978.

sábado, outubro 22, 2005

Papagaio caminhando num mosaico




Ontem a noite, na balada, Federico teve a experiência religiosa de beijar os lábios de três ou quatro seres inefáveis. A um deles conseguiu arrancar o número de telefone. Na volta para sua “kit-solidão”, as luzes da cidade maltrataram-lhe as retinas; a lembrança dos beijos se transformou numa metáfora náutica. No dia seguinte, o guardanapo amassado encima da mesa com o número do telefone da responsável pela pertubatio animi, como uma pedra de criptonita, lhe produzia uma obnubilação mental.
Às 17:00 horas renunciou à sua liberdade, o desejo de aqueles lábios provocava alterações indesejáveis no espelho do seu humor .
Finalmente criou coragem para discar, a voz do outro lado tinha um cansaço hepatítico.

Federico: gostei da experiência de ontem ...
Ser inefável: eu também ...
Federico: você gostaria de repetir a dose?
Ser inefável: olha... o que aconteceu ontem foi uma experiência, eu não estou afim de torná-la um experimentum.

Galileu Galilei, provavelmente, não teria cometido este erro de avaliação. Ele mesmo tinha postulado no século XVI... individuum est ineffabile (nada podemos saber sobre o indivíduo). Por esta razão devotou-se a compreender as regularidades decifrando a obscura linguagem geométrica do universo.
Quis, convencer à igreja da leitura do mundo sobrepujando as fronteiras do latim eliminando “os mal entendidos entre fé e ciência”. Assim o experimentum foi a principal ferramenta deste sábio. Dito de outra forma, experiência controlada e repetida sob as mesmas condições.


Este método experimental que assume o universo como um texto, expulsa do seus domínios outros sentidos do conhecimento; audição, tato, olfato. Os mesmos sentidos foram usados a noite anterior por Federico na boate e foram usados milenariamente pelo conhecimento conjectural.

A conjectura é arbitrária, rebelde, escorregadia. Não pode ser controlada. Assim como agora são os lábios do ser inefável.
O triunfo do Hemisfério esquerdo não acontece somente no ocidente. Os rituais Ndembo, a cultura Nuer e a mitologia Trikster estão aí para reforçar esta misteriosa dominação. Os métodos substituíram o julgamento humano, a evangelização metodológica propiciou o aparecimento de profetas que pregoam as “maneiras certas de fazer as coisas” “Deus está do nosso lado” .
O ápice da dominação metodológica advém das culturas que mais têm intolerância ao erro. O autoritarismo começa com o controle sobre se mesmo. A elegância lógica esconde o trabalho sujo da pesquisa. Em quase nenhum trabalho científico, dissertação ou tese se expõem os procedimentos ou hipóteses que fracassaram. Há uma etiqueta metodológica que impede mostrar os truques do ofício, as gambiarras, os gatos dos analistas que interpretam dados. O caminho das pedras se aprende nos botecos, nos corredores. O cientista “hard” depois de passar o dia inteiro no seu local de estudo à noite consulta os búzios, deixa uma grana no terreiro do padre adivinhador; o coniector , aquele que o conecta com o Acaso e lhe oferece as conjecturas com as que ele trabalha. Nosso cientista, da mesma forma que nosso jovem apaixonado, parece um papagaio apavorado correndo num chão de mosaico.

Até breve
Eladio e Cinthia

PS: a definição do inefável...

" Inefáble... este adjetivo sucede en todos los escritos, y es un conmovedor desvarío de los que generosamente lo desparraman al no haberse jamás parado a escudriñarle la significación...Inefable es por definición... aquello que no alcanzan las palabras...Aplicarlo a cualquier sustantivo es, pués, una confesión de impoténcia, y escribir por ejemplo, "tarde inefáble" equivale a decir: A mi no se me ocurre nada...

Há muitos anos fomos presenteados com esta bela definiçaõ de Jorge Luis Borges, pelos nossos amigos Luciana Martins e Adalberto Müller.

Conferir:


GINZBURG, C. Morelli, Freud e Sherlock Holmes: Pistas e o Método Científico. History Workshop Journal nº 9 , 1980.
BECKER, Howards. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo, Editora Hucitec, 1994.

domingo, outubro 16, 2005

Todos os porcos podem voar !




Por quem ou porquê você estaria disposto a dar a vida?

É uma pergunta que gosto de fazer aos meus alunos no início do semestre na tentativa de descobrir algumas “finalidades” das novas gerações. Nesta minha pesquisa, de uma só pergunta, que faço a dez anos, não tenho encontrado surpresas. A esmagadora maioria dos alunos respondem que dariam a vida pelos seus familiares diretos; pai, mãe, filhos, etc.

Se pudéssemos fazer esta pergunta a alguns venezuelanos do século XIX, muitos responderiam que dariam a vida pela pátria. Muitos dos participantes do Movimento dos Sem Terra já deram a vida pela causa da terra. Indígenas no mundo inteiro o fizeram e fariam pela mesma razão.
Este fato nos remete a um antigo conceito filosófico; a teleologia ou estudo das finalidades últimas.
Salvo engano, foi Aristóteles quem primeiro desenvolveu uma teoria sistemática sobre as finalidades últimas das coisas do mundo.
Na teoria aristotélica o conhecimento deveria focar-se nas causas. Entre as causas formuladas estavam as causas finais. A explicação do porque as pedras rolariam ladeira abaixo seria a inclinação ou tendência destas a procurar o nível mais baixo. Este era, para Aristóteles, o thelos das pedras, algo assim como uma missão inata, seu fim último.
Hoje, um sorriso nos lábios aparece em quem escuta a explicação aristotélica do rolar das pedras. Esta versão não combina com nossos atuais cânones da racionalidade científica. Com o deslocamento histórico do ritualismo e a poésia para territórios mais positivistas, as finalidades somente podem ser atribuídas a seres humanos. Pedras não têm finalidades. Entretanto, foi na biologia onde a perspectiva teleológica floresceu, mesmo dentro da modernidade. Camaleões mudam de cor porque têm “fins” de defesa, ursos e cachorros fazem xixi nas árvores porque precisam demarcar territórios. Estas conclusões da zoologia e da biologia são aceitas sem que nenhum de nós conheça a existência de uma conversação ou entrevista com camaleões ou ursos, para confirmar se eles mudam de cor ou fazem xixi pelas razões atribuídas.
A vocação nos seres humanos é uma forma de thelos a “dedicação incondicional a uma tarefa” define a atitude de indivíduos com “causa”. Max Weber refletiu sobre este assunto talvez inspirado em Aristóteles.
A vocação científica, é um “mandato interno” que orienta à ciência valorizado na nossa cultura. Mesmo que saibamos que estatisticamente muitos indivíduos vocacionados para a ciência sucumbem pela falta de patrocínio ou pela falta de vocação para procurá-lo.

Quase no final da aula um aluno perguntou-me, professor, e então qual é seu thelos particular. Eu respondi; no início da minha vida consciente pensei que minha missão neste mundo era brincar com os sons, fazer música. Depois na idade adulta cheguei à conclusão que minha finalidade última, nesta vida, era fazer pesquisa, produzir conhecimento. Hoje sei que meu thelos, é estar casado, ser marido, amar a minha mulher... descobri isto nos momentos de solidão amorosa. Quando estou sem amor não consigo nem fazer música, nem pesquisar. Algumas alunas da sala suspiraram e chegaram a comentar: "professor, você bem que poderia ensinar esta teleologia para os homens desta cidade”, foi então quando um aluno bem atento levantou o braço e falou; “calma professor não jogue seu thelos pr’a cima do thelos dos outros...tô fora!!!”

abraços do Eladio e Cinthia


PS: O título deste texto nada tem a ver com seu conteúdo. Foi tudo jogada de marketing. Espero tenha dado certo.

Este texto vai com especial carinho a dois admirados colegas, os sociólogos: Roniere Ribeiro do Amaral (Roni) e Thadeu de Jesus Silva Filho – consultores da Europa anglo-saxónica e da América setentrional respectivamente.


PS 2: Num comentário posterior, meu amigo Bruno Ayres me convenceu que o título tem muita relação com o texto. Quem é que vai saber qual é o thelos dos porcos? derrepente é voar mesmo. Obrigado Bruno, valeu.

PS3 A foto do "Pig in the air" foi um achado do amigo Bruno Jorge, obrigado Brunão...

Conferir: RUSSELL, Bertrand. História do pensamento ocidental. Rio de janeiro; Ediouro, 2002.

quinta-feira, outubro 13, 2005

Qual é o parentesco que existe entre um feto, um morcego e os tipos de pesquisa?


“A consciência reina mas não governa”
Paul Valery


O médico do único posto de saúde da aldeia indígena Warao, no delta do rio Orinoco, na Venezuela, me pediu que ficasse uns dias tomando conta do local porque ele teria que viajar. Uma dessas noites chegou um jovem indígena com seu pai. Fazia três dias que eles remavam até conseguirem chegar ao posto. O jovem tinha sido mordido por uma cobra e estava com parte da mão esquerda necrosada.

O pai não quis que seu filho fosse atendido pela única enfermeira do posto que os recebeu. Quando perguntei qual era a razão da resistência ele me respondeu que não permitiria que seu filho fosse atendido por uma mulher grávida.
Utilizei minhas últimas reservas de neutralidade axiológica para entender o comportamento do pai indígena e consegui apenas respeitar sua decisão.
Afortunadamente, o médico voltou no dia seguinte e, com muita dificuldade, o ajudei a suturar a mão do jovem.
Somente muitos anos depois acredito ter entendido a decisão deste pai Warao. Trata-se de um conhecido medo que muitas tribos, no mundo, têm do feto humano.

Foi a partir da leitura de “Pureza e perigo”, livro escrito pela antropóloga inglesa Mary Douglas que tive acesso a seu consistente e belo insight. Toda realidade ou situação de difícil classificação torna-se, em qualquer cultura, perigosa ou poluída. Daí vem, por exemplo, nosso medo e a mitologia envolvida em torno do morcego, que é um animal de difícil classificação. Pelo tipo de locomoção poderia ser classificado como um pássaro, entretanto, pela forma da cabeça ou tipo de pelugem poderia ser classificado como um roedor. Restariam resolver ainda as formas das orelhas e tipos de alimentação que não intentaremos classificar para não espantar os leitores.


Os fetos humanos são responsáveis, em algumas mitologias indígenas, pelas tragédias naturais e pelas perdas das colheitas. O feto é uma realidade de difícil classificação. Nenhum indígena precisa estudar fisiologia comparada para saber que um feto humano é muito parecido com muitos tipos de feto animal. Portanto, o feto humano está no meio do caminho. Nem é humano nem é animal, daí seu poder maligno, seu perigo ou poluição.

Nesses dias, um aluno me fez a seguinte pergunta: professor, eu vou fazer umas entrevistas nas casas dos meus colegas aplicando um roteiro de perguntas abertas... Que tipo de pesquisa é esta? Eu respondi: pelo tipo de técnica de levantamento que você vai a utilizar - que é a abordagem em domicílio - poderíamos dizer que é uma pesquisa quantitativa. Agora, pelo tipo de instrumento que você decidiu utilizar que é um roteiro, e portanto, tem perguntas abertas, sua pesquisa pode ser classificada como qualitativa. Sinceramente, não sei que tipo de pesquisa é essa... Meu aluno arregalou os olhos, acho que de medo.

PS: Nessas horas, os manuais de pesquisa também se "tremem" nas calças.

abraços a todos

Eladio e Cinthia


Conferir:
DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.


Dedicamos este texto a Federico Percibal e a Maria Cecilia Oduber

segunda-feira, outubro 10, 2005

Chorando e vestindo o morto



A razão exerce sobre a razão um fascínio absoluto. Mesmo quando ela está a serviço do poder, da mentira ou da dúvida metódica. A ideologia, a racionalização e a filosofia são filhas destes matrimônios na ordem em que aqui aparecem. Estas afirmações podem ser melhor compreendidas se me permitem contar-lhes uma história na que me envolvi há alguns anos atrás. Um velho amigo, poeta de vocação, depois de muito ter “abusado da regra três” perdeu a tranqüilidade para sempre quando sua mulher decidiu dar o troco. Mal ferido, com muitos whiskys entre as costas e o peito, andava pelas ruas de Brasília "faltando-lhe a metade da alma e sobrando-lhe a metade do leito" como costumava dizer o poeta mexicano Amado Nervo. Uma noite dessas tocou na minha porta pedindo-me um conselho. Queria largar tudo. O apartamento que tanto tinha-lhe custado, o cargo no governo que recém conquistara e sua vida na cidade que cada dia parecia mais promissora. O que eu faço agora? me perguntou... Eu, que na época, cultivava mais o conhecimento que a sabedoria me apeguei a uma interpretação infantil que fiz do modelo infantil freudiano. Então lhe propus o seguinte plano: Faça uma reunião de trabalho numa mesa redonda com as feras que querem te retalhar. Dê um bom pedaço de carne a cada uma delas. Não subestime as solicitações de nenhuma. Faça uma viagem longa, assim, o tigre, que deseja que você large tudo, acalma seu psiquismo sentindo que você largou alguma coisa. Na volta, abraçe seus deveres para que o lobo baixe seus níveis de angustia conferindo que, ao final, você nada largou. Depois faça um balanço desta estratégia para que a terceira fera, saiba como você foi parcimonioso, e possa sorrir para você e para a vida. Assim meu amigo fez.
Nunca soube do resultado do plano, nunca a gente comentou sobre o assunto. Hoje sei que não são apenas três feras as que nos trituram e sim uma cavalaria vigorosa e bem alimentada que nos dá coices em méio a um circo de hienas na palma da mão do único Deus que conheço: O Acaso. Acredito que esta imagem exagerada não diga muita coisa para a metade dos meus amigos, sobretudo para aqueles que fizeram das suas almas um espelho do espelho do espelho.
Meu amigo poeta naquele momento pediu-me um conselho - concilium - conciliação. A efetividade dos nossos rituais particulares consegue unificar os paradoxos, antes de que eles acabem conosco. Quando criança, minha mãe, com seu espanhol implacável e belo me dizia: meu filho a vida é assim mesmo agente tem que “llorar y vestir el muerto”. Na pesquisa não é diferente.

bom feriado meus queridos.

Eladio Oduber

Conferir: ROANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
A pintura é cortesia do amigo e "compinche" Manu Müller

sábado, outubro 08, 2005

O pesquisador cego e o temperamento das maças e das pêras.

Nos meus bons tempos de professor de faculdade costumava “repreender” os alunos descompromissados com exercícios que batizei de “prendas filosóficas”. Foi a leitura de Roger-Pol Droit que me inspirou a aplicação destes corretivos em sala de aula. Em verdade, o livro, cujo título é “ 101 Experiências de Filosofia Cotidiana” não propõe atormentar alunos com punições. Apenas sugere que o leitor se coloque em situações extra-cotidianas que propiciem reflexões sobre o mundo. Como por exemplo, fazer telefonemas aleatórios, tentar eliminar os próprios pensamentos ou mergulhar na água fria.
Na época decidi fazer algumas adaptações às propostas de Droit que resultaram em depoimentos emocionantes dos alunos que pagavam as prendas. Uma destas adaptações foi a sugestão de caminhar de olhos vendados no meio do mato durante, pelo menos, 30 minutos. Eu mesmo já tinha me submetido a esta experiência na reserva ecológica da QI 27 do Lago Sul. Lembro-me que fiz isto inspirado num relato do antropólogo Clifford Geertz sobre um povo indígena norte-americano que conseguia solucionar os impasses dentro da tribo obrigando a um homem a caminhar de olhos vendados durante alguns dias pela mata fechada. Segundo Geertz, o enviado, via de regra, consegue o caminho de volta para a aldeia e traz consigo a resposta ao problema que gerou o impasse.
A experiência de caminhar de olhos vendados, à noite, num bosque não é exatamente agradável. Porém resulta numa bela metáfora que descreve bem a situação de um pesquisador angustiado com a falta de rumo do seu estudo. O abandono das referências a que estamos acostumados nos impõe a transcendência dos limites da nossa habitual arrogância. Esta decorre do controle ilusório que acreditamos possuir sobre o nosso objeto de estudo e suas circunstâncias. Devo confessar, meus amigos e amigas, que eu gostei muito mais do resultado que obtive na oportunidade em que me submeti à “dieta do arroz integral”. No 10° dia do jejum já conseguia perceber a masculinidade decadente das maças e a docilidade austral das pêras.

Boa madrugada a todos do Eladio Oduber

PS: Moral da história: quando sua pesquisa entre num impasse, faça como o nativo, tire as vendas dos olhos e volte para a aldeia cheio de soluções. Todo mundo vai a acreditar em você, inclusive seu orientador.

Conferir:

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1978.
DROIT, Roger-Pol. 101 experiências de filosofia cotidiana. Rio de janeiro: Sextante, 2002.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Por que a objetividade científica tem aroma de trabalho assalariado?


O sociólogo Edward Shils, na década de 60 do século XX, Afirmou que a universidade tinha como tarefa urgente salvar a alma. Eu me perguntei que alma? Com um pouco de curiosidade sobre o tema descobri que a “alma” a que se referia Shils era a da academia “humboldtiana”. Em outras palavras, a universidade devia salvar o espírito aristotélico, monástico, ou, porque não; enciclopedista da relação com o conhecimento. Este estilo de estudar e produzir idéias também foi abraçado, nos séculos XVIII e XIX, pelas aristocracias americanas. Por exemplo, Simón Bolivar, aos 14 anos, adotou Simón Rodriguez como seu novo tutor, este último limitou as leituras do seu pupilo a poucos autores clássicos e dedicou o resto do tempo a passeios a cavalo, banhos de rio e longas caminhadas didáticas pelas matas venezuelanas. Rotinas parecidas já tinham os amigos de Paul-Henry Tiry d’ Holbach (1723 – 1789) Barão parvenu. Este mecenas muito contribui com a construção da Encyclopedie, através dos convites ao estreito circulo de amigos que desenvolviam semanalmente, na mansão de le Granval, a seguinte rotina:
a) os amigos chegavam 5ta feira a noite e cada um estudava, por conta própria, das seis da manhã de sexta até uma da tarde;
b) às 13:30 todos reuniam-se para almoçar;
c) das 15:00 ao por do sol davam passeios pelos bosques conversando sobre filosofia e política;
d) ao cair da tarde, voltavam a casa para jantar, ouvir música e jogar cartas. Deitavam tarde da noite;
e) no dia seguinte recomeçavam tudo de novo.
Foram rituais como estes que contribuíram para que Diderot e d’ Alembert construíssem uma obra de 35 volumes que levou 30 anos para ser terminada. Quem tiver a oportunidade de conhecer alguns verbetes da Encyclopedie notará que as especulações iluministas ainda mantém a fragrância de um subjetivismo filosófico que, de qualquer forma, desafiou o “despotismo da emotividade, da superstição e da magia” religiosa. Foram em “dias” assim como estes onde os enciclopedistas banharam suas idéias com o perfume do ócio aristocrático. Diferente do cheiro de trabalho assalariado com que nascem nossas pesquisas virtuosas de objetividade científica.

Desejo bon sono e bons sonhos a todos.

Eladio Oduber

Conferir:
De MASI, Domenico, PEPE Dunia, As palavras no tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.
SHILS, E. The Calling of Education. Chicago: The University of Chicago Press, 1997.