Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

segunda-feira, outubro 10, 2005

Chorando e vestindo o morto



A razão exerce sobre a razão um fascínio absoluto. Mesmo quando ela está a serviço do poder, da mentira ou da dúvida metódica. A ideologia, a racionalização e a filosofia são filhas destes matrimônios na ordem em que aqui aparecem. Estas afirmações podem ser melhor compreendidas se me permitem contar-lhes uma história na que me envolvi há alguns anos atrás. Um velho amigo, poeta de vocação, depois de muito ter “abusado da regra três” perdeu a tranqüilidade para sempre quando sua mulher decidiu dar o troco. Mal ferido, com muitos whiskys entre as costas e o peito, andava pelas ruas de Brasília "faltando-lhe a metade da alma e sobrando-lhe a metade do leito" como costumava dizer o poeta mexicano Amado Nervo. Uma noite dessas tocou na minha porta pedindo-me um conselho. Queria largar tudo. O apartamento que tanto tinha-lhe custado, o cargo no governo que recém conquistara e sua vida na cidade que cada dia parecia mais promissora. O que eu faço agora? me perguntou... Eu, que na época, cultivava mais o conhecimento que a sabedoria me apeguei a uma interpretação infantil que fiz do modelo infantil freudiano. Então lhe propus o seguinte plano: Faça uma reunião de trabalho numa mesa redonda com as feras que querem te retalhar. Dê um bom pedaço de carne a cada uma delas. Não subestime as solicitações de nenhuma. Faça uma viagem longa, assim, o tigre, que deseja que você large tudo, acalma seu psiquismo sentindo que você largou alguma coisa. Na volta, abraçe seus deveres para que o lobo baixe seus níveis de angustia conferindo que, ao final, você nada largou. Depois faça um balanço desta estratégia para que a terceira fera, saiba como você foi parcimonioso, e possa sorrir para você e para a vida. Assim meu amigo fez.
Nunca soube do resultado do plano, nunca a gente comentou sobre o assunto. Hoje sei que não são apenas três feras as que nos trituram e sim uma cavalaria vigorosa e bem alimentada que nos dá coices em méio a um circo de hienas na palma da mão do único Deus que conheço: O Acaso. Acredito que esta imagem exagerada não diga muita coisa para a metade dos meus amigos, sobretudo para aqueles que fizeram das suas almas um espelho do espelho do espelho.
Meu amigo poeta naquele momento pediu-me um conselho - concilium - conciliação. A efetividade dos nossos rituais particulares consegue unificar os paradoxos, antes de que eles acabem conosco. Quando criança, minha mãe, com seu espanhol implacável e belo me dizia: meu filho a vida é assim mesmo agente tem que “llorar y vestir el muerto”. Na pesquisa não é diferente.

bom feriado meus queridos.

Eladio Oduber

Conferir: ROANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
A pintura é cortesia do amigo e "compinche" Manu Müller

3 Comments:

Blogger adalberto müller said...

nossa, eládio, que história mais tristinha! mas bem legal. espero poder lê-lo mais vezes. o quadro do manu está ótimo. eu não conhecia!
abração

12:49 AM  
Anonymous Anônimo said...

Eládio, está tudo lindo no teu site. Não pude ler todos os textos ainda, somente o primeiro, mas passei uma vista dolhos neles e vi tua enorme capacidade de fazer relações inusitadas. Continue nos presenteado com essa elucubrações de cientista apaixonado. Tua amiga de sempre.

2:49 AM  
Anonymous Anônimo said...

O Caos nunca morreu! Já deus... esse aí... lembro da pílula do dia seguinte usada. Depois veio a Natureza. Ah, bela tentativa. Não resistiu ao parto. Enfim, a Humanidade. Também uma pena. Miolo mole. Essa resistiu um pouco mais. Alguns minutos. Porém um belo dia, uma planta rara, bela em toda sua artificialidade, fez uma pergunta crucial: será problema da mãe? Pra saber somente a encontrando. Foi então que tivemos a mais extraordinária experiência: nunca houve mãe alguma! E agora o que faremos? Parimos a razão? A arte? A filosofia? A ciência? O trabalho? De súbito o Acaso de mãos dadas com a Aposta. Lembro que sorriram para mim. Um daqueles sorrisos entre cúmplices. Enchemos os pulmões de um ar novo e sentimos: O Caos nunca nasceu!

2:10 AM  

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