Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

quarta-feira, março 28, 2007

O jogo da micro–anarquia

Na década de 50 os fãs da psicanálise chegaram a afirmar que o homem não vivia era o inconsciente quem o vivia. Antes, na passagem do século XIX para o século XX, a sociologia holística afirmou que não havia chances para decisões individuais. Os fatos sociais, o quadro de forças históricas e econômicas superavam toda tentativa de intervenção individual.

De tal forma que o ser humano ficou assim, como um fino pedaço de mortadela entre a fatia da história e a fatia do inconsciente. Infelizmente, este dilema não tem um fim próximo. Em quanto isto não se resolve podemos tentar passar pela fresta da mortadela e exercitar “flashes” micro-anarquicos que nos devolvam o poder que nunca tivemos.

A seguir algumas propostas inócuas:

a) Fique numa parada de ônibus esperando nada, indo para lugar nenhum. O rebanho de pessoas do seu lado terá a ilusão que você é um deles;

b) Ao chegar no trabalho, retire o crachá da “coleira” e passe pela catraca somente o crachá. Agente já se curva suficiente o resto do dia.

c) Retire o olhar das mulheres ou dos homens muito atraentes. B. Russell já dizia que a ausência de algumas coisas é fundamental para nossa felicidade;

d) Faça uma viajem a uma cidade distante, caminhe pelo centro, entre a multidão, pense que os músculos do seu rosto não vão se contrair, você não encontrará alguém conhecido. Você é uma formiga, um sapato gigante poderá tirá-lo de cena em qualquer momento;

e) Quando sair de casa e encontrar os sinais vermelhos e, depois, fechados os locais que procuravas. Sente na calçada, espere que a corrente da bicicleta do mundo se acomode nas suas coroas. As vezes somos mais papistas que o Papa.

f) Faça uma tatuagem numa parte oculta e bem doída do corpo. De preferência uma tatuagem que tenha uma função compensatória. Do tipo uma cobra imensa de pê. Se você tiver problemas de ereção. Dias antes de fazer a tatuagem você conhecerá a fragilidade humana, dias depois você conhecerá uma das duas irmãs mentirosas, “a glória”;

g) Chore, chore toda vez que puder. Justo na frente do seu amor, num café às 15: horas de tarde, quando a metade da humanidade está empurrando o carro do mundo. Fume se quiser, use um boné. Olhe as amáveis sombras das árvores ensolaradas. Chore de novo. Volte pela fresta, volte, ocupe seu lugar de mortadela. “amanhã será outro dia”.

Abraços do Eladio.


PS: Não adianta, tudo isto que acabei de dizer é muito pequeno-burguês, é simplesmente podre.

Imágem: Desejo / Eladio Oduber. Março / 2007

domingo, março 25, 2007

Caballo

Entender a nós mesmos é tarefa infame. Entender às outras pessoas envolve alguns esforços. Dentre eles, o sacrifício das preferências subjetivas e uma disposição para minimizar os próprios juízos de valor.

Admitir que os nossos pontos de vista podem ser relativizados e que as nossas escolhas axiológicas podem ser equalizadas a outras escolhas, nos coloca numa posição bastante desconfortável, eu diria, desamparada.


Todos os dias depois de lavar o rosto, escovar os dentes e vestir a roupa, colocamos os óculos dos nossos pré-conceitos e saímos apontando o dedo, tentando petrificar, no fluxo caótico da vida, alguns desejos, atribuindo “nomos” ao devir, querendo paralizar o mundo que flui, que envelhece e derrete moribundo diante de nós.

É como ir ao rio com um pote redondo e voltar a casa com a ilusão de que colhemos um pedaço de água redonda.
Em geral não saímos para a rua com a finalidade de entender à humanidade. Por isto levamos o molde dos pre-julgamentos conosco. Eles nos ajudam a entender a vida com a barriga. Não estamos interessados em compreender, procuramos que o mundo nos entenda. Nada mais prazeroso que encontrar um autor que não nos contrarie, diz Millor Fernandes.
Vamos ao rio da vida com o nosso pote redondo e esperamos que a vida nele caiba. Assim, confirmamos nossas profecias.
Saímos de casa, assombrados pelo fantasma de Picasso: “eu não procuro, acho” e a existência nos fala baixinho no ouvido: “ não me procurarias se já não me tivesses achado”.

Bom domingo a todos.

Eladio Oduber

Conferir: JUNG, C. G. (Org.) “O homem e seus símbolos”. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1964 pp. 62 - 63

Imagem: Cavalo / Eladio Oduber. Março 2007


sexta-feira, março 23, 2007

Linhas retas, sexo, jornalistas, RPs, e pesquisas.

É possível que historicamente existam entre homens e mulheres tantos desacordos que possamos colocar em questão o valor de muitas conquistas acadêmicas, científicas ou artísticas.
Dois exemplos: por trás de algumas polêmicas profissionais há, em verdade, acirradas lutas de gênero. É o caso da antiga querela entre jornalistas e profissionais de Relações Públicas.
Em pesquisas realizadas com os meus alunos descobrimos que tanto jornalistas quanto os profissionais de Relações Públicas quando submetidos a técnicas projetivas atribuíram à profissão de jornalismo caraterísticas como coragem, vôo intelectual, raciocínio lógico etc. caraterísticas estas consideradas na nossa cultura como masculinas.
Diferentemente, associaram à profissão de Relações Públicas atributos culturalmente considerados femininos, como; capacidade de organização, talento para cuidar dos detalhes e outros.
Desvendamos com estas respostas que os históricos desacordos entre jornalistas e RPs não somente estão relacionados à luta pela reserva de mercado e sim a uma disputa de gêneros que permeia outros âmbitos da vida social.
Algo similar acontece com as perspectivas metodológicas qualitativas e quantitativas. Já passou o tempo em que os professores se “entredevoravam” em discussões sobre a validade absoluta de alguma das perspectivas.
Hoje já é muito comum ler nos textos de metodologia e pesquisa de mercado ou marketing que ambas abordagens são complementares.
Assim as pesquisas qualitativas não são nem melhores nem piores que as quantitativas e vice-versa. Por isto ambas se completam.
Entretanto, o gênero masculino deu um “jeitinho” para continuar sua hegemonia dentro do "campo" cientifico. Assim, ficou reservada às pesquisas qualitativas a tarefa de explorar o tema, levantar assuntos, impregnar-se do problema. E ás pesquisas quantitativas ficou a missão de dar a palavra final, por isto são chamadas pesquisas conclusivas.
A humanidade gosta de gráficos, porcentagens, testes de inferência estatística, indícios de cientificidade. Ainda não confia nas amostragens teóricas, na interpretação , nas pistas, na conjectura.
É a luta da subjetividade contra a objetividade, da intuição contra a experimentação. Da verdade desvendamento contra a verdade adequação.
Muito cedo descobri que, certamente, o caminho mais curto entre dois pontos é uma linha reta, entretanto, e isto também é verdadeiro, nem sempre é o mais bonito.

Abraços do Eladio Oduber

Imagem: Aristocrata / Eladio Oduber. Março de 2007

sexta-feira, março 16, 2007

Monofonia

Acho que sei por que é tão difícil para algumas pessoas dizer: “não sei”. Trata-se de um gesto automático, produto da instalação, na alma, do software da monofonia existencial.
O homem monofónico tem uma imagem acabada de se mesmo. Ele vive em permanente monólogo. Digamos assim... se vende e se dá o trocado. A representação que o homem monofónico construiu de se mesmo está encerrada. Muito cedo descobriu seus imperativos categóricos, fechou o boteco, quebrou a luneta, deu as costas para o infinito e as estrelas.
O homem e a mulher monofonicos se sentem finalizados. E no arco do coração morto um “the end” em néon pisca eternamente.
O cérebro do homem monofónico repousa num aposento que ele mesmo lacrou para sempre. E no espírito uma pasadificação permanente. É o reino dos momentos já vividos. O limiar do presente lhe provoca náuseas.
Todo o que as pessoas sabem sobre este personagem, ele esconde de se mesmo. O homem monofónico dobra nas esquinas e tromba com a sua pessoa, sempre coincide com ele mesmo, assim como uma bola de sinuca que rola acima de um espelho. É um evento morto. A monofonia lhe permite imitar gestos e idéias, carregar sombras e apegar-se a este mundo como um calango a uma cortiça. Por isso arrota uma resposta para todo.

Abraços do Eladio

PS: Dedico este texto ao amigo Rubens de Oliveira que me inspirou com um escrito de A. E. de Moraes. Sobre o "não sei".

Conferir: TEZZA, Cristovão. A polifonia como categoria ética” In: Fiodor Dostoievski: O profeta da literatura Rusa. revista Cult # 04.

Imagem: Dunas / Eladio Oduber. 1994 (?)

terça-feira, março 06, 2007

Misoneismo


“Eu fiz isso', diz minha memória. 'Eu não posso ter feito isso', diz meu orgulho, e permanece inflexível. Por fim, a memória cede" (F. Nietzsche)

Investir dinheiro e tempo em aprimorar instrumentos que aumentem a capacidade dos sentidos é o estilo das nossas sociedades. Nossa cultura superestima o papel da força de vontade e não admite, para se mesma, o motivo das suas omissões e esquecimentos.

As tragédias mundiais ou locais nos fazem homens e mulheres culpados ou deprimidos. A gente não esquece as mortes dos jovens e crianças acontecidas diariamente nas grandes urbes. H. Marcuse dizia que, no fundo, todos pensamos que todo poderia ter sido melhor. E isso nos achata como seres humanos dada a nossa sensação de impotência. A psicologia moderna fala que um dos sintomas de maturidade emocional é, por exemplo, ter iniciativa para fazer um abaixo assinado e assim impedir a poda daquela árvore antiga e bela da nossa quadra.

No outro extremo, quando a hipostasia chamada mercado tenta bolar alguma estratégia em direção ao auto-conhecimento, então, uma lógica objetivizante invade o espírito. Por exemplo, surge a literatura de auto-ajuda e com ela a elefantiase do amor próprio.

O ambíguo “amor ao próximo” da ideologia cristã foi eticamente superado pelo “amor ao mais longícuo” do Nietzsche. Entretanto, nem um nem outro impediram o advento do inquebrantável “amor próprio”.

1º mandamento do catecismo da auto - ajuda: “gostar-se muito”.
“Amar-se a se mesmo” rezam estes manuais de sobrevivência das urbes contemporâneas.
Fica assim pronto o canteiro para o florescimento da narciso-megalia como constitutiva do raciocínio ético das populações urbanas.

Talvez possamos um dia entender melhor as razões das nossas escolhas culturais se prestarmos atenção nas mensagens que os animais, mendigos, bêbados, tatuados, crianças, e loucos querem passar ao mundo. Abandonar o misoneismo, isto é, o ódio e medo ao novo que está sufocando nosso entendimento pode ser um caminho.

Abraços do Eladio

Imagem: Nada / Eladio. Março 2007

Conferir: O homem e seus símbolos C. G. Jung (Org)