Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

terça-feira, março 06, 2007

Misoneismo


“Eu fiz isso', diz minha memória. 'Eu não posso ter feito isso', diz meu orgulho, e permanece inflexível. Por fim, a memória cede" (F. Nietzsche)

Investir dinheiro e tempo em aprimorar instrumentos que aumentem a capacidade dos sentidos é o estilo das nossas sociedades. Nossa cultura superestima o papel da força de vontade e não admite, para se mesma, o motivo das suas omissões e esquecimentos.

As tragédias mundiais ou locais nos fazem homens e mulheres culpados ou deprimidos. A gente não esquece as mortes dos jovens e crianças acontecidas diariamente nas grandes urbes. H. Marcuse dizia que, no fundo, todos pensamos que todo poderia ter sido melhor. E isso nos achata como seres humanos dada a nossa sensação de impotência. A psicologia moderna fala que um dos sintomas de maturidade emocional é, por exemplo, ter iniciativa para fazer um abaixo assinado e assim impedir a poda daquela árvore antiga e bela da nossa quadra.

No outro extremo, quando a hipostasia chamada mercado tenta bolar alguma estratégia em direção ao auto-conhecimento, então, uma lógica objetivizante invade o espírito. Por exemplo, surge a literatura de auto-ajuda e com ela a elefantiase do amor próprio.

O ambíguo “amor ao próximo” da ideologia cristã foi eticamente superado pelo “amor ao mais longícuo” do Nietzsche. Entretanto, nem um nem outro impediram o advento do inquebrantável “amor próprio”.

1º mandamento do catecismo da auto - ajuda: “gostar-se muito”.
“Amar-se a se mesmo” rezam estes manuais de sobrevivência das urbes contemporâneas.
Fica assim pronto o canteiro para o florescimento da narciso-megalia como constitutiva do raciocínio ético das populações urbanas.

Talvez possamos um dia entender melhor as razões das nossas escolhas culturais se prestarmos atenção nas mensagens que os animais, mendigos, bêbados, tatuados, crianças, e loucos querem passar ao mundo. Abandonar o misoneismo, isto é, o ódio e medo ao novo que está sufocando nosso entendimento pode ser um caminho.

Abraços do Eladio

Imagem: Nada / Eladio. Março 2007

Conferir: O homem e seus símbolos C. G. Jung (Org)

4 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Chacho,
Suas gravuras estão lindas!!!!! Quando é que vai sair a exposição?

9:06 AM  
Anonymous Anônimo said...

Estou muito enrolada na minha dissertação e fiquei traumatizada, por isso eu leio o blog e não falo. Resolvi diferentemente: vou desabafar aqui, onde suponho aconchego.
A imagem que tenho do/a cientista - daquele cientista "mesmo", é de uma pessoa movida pelo erótico, pelo impulso que faz a gente se manter num video game, querer a revanche no jogo de futebol - alguém absolutamente desocupado da indústria da pesquisa. E isso existe? Há vida fora da indústria da pesquisa?
Dias atrás, depois de me dar conta que sou uma dura e dependente da família, achei idiotia ter gasto tanto tempo sobre as teses pos-estruturalistas enquanto o que a academia (essa onde peço passe) me pede é apenas "objeto", introdução (tese) ,desenvolvimento e "conclusão". A academia pede que "optemos" pelos objetos já disponibilizados em seu horizonte de possibilidade discursivo. Uma espécie de pacto de via única onde mostramos nossa adesão a um contrato em branco. Subserviência, exatamente como quando fazemos uma entrevista de emprego e devemos mostrar que "vestimos a camisa". Será que eu não sou capaz de fazer isso e "matar esse tigre"? Parece que não. Eu, que sempre vivi na ficção, parece que chequei na fronteira do que é possível fingir.
Assim também não dá pra fingir que não se sofre do sofrimento alheio ao saber/presenciar os absurdos cotidianos que ferem... vou dizer com cuidado a palavra ... a "RAZÂO".
Há razão no esquecimento e também nessa impossibilidade de esquecer, que fica no corpo mesmo, vira uma razão do corpo, à revelia das conveniências. A mesma razão que move o cara na pesquisa, a meu ver - aquela pesquisa "ideal", que não sei se existe.
Será que caí no conto do vigário?

9:37 AM  
Anonymous Anônimo said...

Querido Eladio,
seus textos sempre maravilhosos como sua pintura, me levam a muitas reflexões. Após uma tarde e noite acamada por uma forte gripe,ler seu blog é animador.
Penso que o homem é um ser emocional e através dessa emoção ele se mantém atento aos sinais que o mundo lhe manda. Nos afastamos muito do nosso homem primitivo que explicava a vida atraves da religião dando um sentido a nossa existencia.Acredito que exista no ser humano um instinto de procura da divindade. Ao contrário do livros de auto ajuda que você cita, precisamos descobrir o sagrado das coisas, é descobrir o caminho da solidariedade entre os homens. Quando se ve o mundo com os olhos do sagrado, descobre-se que tudo tem relação com tudo, que tudo influencia tudo, que existe um holismo cósmico, cuja a força sintetica organiza tudo. Não é possível pensar uma moral social comunitária sem pensar no sagrado.
Beijos.

10:43 AM  
Anonymous Anônimo said...

Que saudade desses diálogos virtuais com vocês, Eladio e Cinthia. Um abraço grande, Graça.

3:59 PM  

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