Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

sábado, fevereiro 24, 2007

Satanás e o café expresso

Conta Rudyard Kipling que quando o Diabo viu por trás das folhagens o primeiro rabisco que Adão fez na terra com um graveto, falou baixinho assim “ É bonito, mas, será que é arte?
Uma pergunta diabólica típica de quem quer botar uma pulga atrás da orelha de muitos que não tem opinião própria. Certamente, o cochicho do Diabo foi escutado pelo primeiro crítico de arte que espalhou a incerteza através dos séculos dando início à árvore genealógica daqueles que formam a opinião de nós, neófitos.
“Experts” há por todos os lados. Brotam que nem erva ruim em todas as esferas do conhecido e do desconhecido. Nos últimos messes, por exemplo, me propus a investigar a arte de fazer um bom café expresso. Muito me apavorei ao descobrir que é quase impossível correr atrás do acúmulo de técnicas, maquinarias e conhecimentos que se precisam para poder fazer um simples e bom cafezinho. Existem cursos e concursos de “baristas”, um conglomerado tecnológico, empresas, grupos de profissionais e empresários que classificam, julgam, avaliam as misturas, em fim... brigam pelo poder material e simbólico no comercio mundial do café.
Existe inclusive, há algum tempo, uma querela internacional do café entre Europa e Estados Unidos que tornou-se evidente a partir do sucesso de uma franchising norte-americana do café chamada “Starbucks” que parece representar o “ethos” do MacDonalds no mundo do café. A tradição européia e seus seguidores no mundo estão indignados com as mudanças introduzidas pela “Starbucks” quanto a misturas, procedimentos, tamanho das taças, marketing etc.

É uma briga de cães famintos pelo monopólio de um pretenso e modelado conhecimento sobre o tingir da água com o pó torrado do pé de “Coffea arabica” de origem africana... Nos bastidores de esse glamour do mundo da culinária existem, para variar, grosseiras vontades de poder.
Moral da história: peguei minha rabeca e fui tocar música a outro lado. Procurei as formas atávicas de fazer café dos povos nômades, agrícolas ou itineirantes. Encontrei em livros, na rede e entre amigos e amigas formas e receitas mágicas, simples e gostosas de fazer café que tem se perpetuado na história oral.
Junto ao meu colega, o filósofo bucaneiro, Leo Pimentel aprendi a moer, mesclar e desfrutar de cafés com cardamomo, canela, gengibre, cravo, noz moscada. Com o sem açúcar em longas tardes de conversa sobre cardápios. Concluímos que o simples ato de aprender a fazer um café envolve também uma postura política e filosófica. Porque te obriga a tomar posições e fazer escolhas éticas e estéticas.

A culinária dos grupos humanos que tem o “viver” como principal “missão” neste mundo, está toda aí, disponível, liberada, para ser praticada e desfrutada. O curso de “barista” que quase fiz numa instituição privada de Brasília ia me custar 600 Reais sem contar a frustração de voltar para casa e não ter as máquinas para fazer o meu cafezinho...
O desfrute intenso do café feito no “ibrik”, no pote ou nas panelas do deserto falconiano da Venezuela, nas tendas Tuareg ou na costa do Salé em Marrocos é apenas uma pequena expressão de que é possível ainda explodir as reservas de mercado que foram sendo semeadas nas nossas almas ou nas almas daqueles que gostam de escutar os cochichos do Diabo .

Abraços do Eladio

PS: Querida Liss Mary , mil vezes obrigado pelas suas receitas de pão e café que você arrancou das vozes dos seus antepassados mouriscos, espanhóis, orientais.

Querida Lenise, obrigado sempre por colocar seu extraordinário talento culinário e artístico a serviço dos nossos caprichos.

Conferir: MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 30

Imagem: Ibrik / Eladio Oduber. Fev. 2007


quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Caro, Data, Vermibus

O Brasil “global” está assistindo o último Big Brother pelas razões de sempre: os assalariados do país adoram ver o ócio dos escolhidos.
Em um “post” anterior Cinthia Oliveira comentava isso mesmo em relação aos motivos pelos quais visitamos os zoológicos; gostamos de ver o ócio dos animais. Bem, a casa do BBB e os zoológicos tem muitos outros pontos em comum. Fazendo sempre a ressalva que os animais do Zoo não entraram nele, digamos assim, com tanto entuciasmo. Nisto, os dois recintos mostram uma clara diferencia. Paremos por aqui.
A questão é: ao redor de que “coisas” se aglutina a alma de uma nação?, Quem são os nossos símbolos morais?
José Martí dizia que, na história, alguns homens condensam a coragem que falta a muitos. A origem da palavra coragem é conhecida. “Actio cordis”; agir partindo do coração. E, como diz Nietzsche, “ali onde está teu tesouro, ali, está teu coração”. Cabe perguntar: quais são os tesouros do Brasil?, onde mora o coração dos brasileiros?
Graças a deus, não há consenso. Para muitos, o coração está nas Casas Bahia. Para outros, nas cordas do violão do Rafael Rabelo. Na cerveja gelada, na poesia de Adélia Prado, nas pernas de Luana Piovani, num filme de Guel Arraes, na amizade recém descoberta, nas palavras de Dalton Trevisan, no bairro, na esquina...como diria Rubén Blades .
E os nossos símbolos morais?, aqueles que emprestam o sentido para ficar em pê, dentro das calças, neste mundo?
De preferência escolhemos, alguém não muito longe de nós, do nosso círculo familiar. Parece não haver razões para confiar em líderes, políticos ou espirituais, que se entregam facilmente nos braços dos seus próprios narcisos.
Ontem, numa agradável tarde de café e fumo, o amigo Fernando Leza abriu alguns dos seus cofres. Falou da Espanha e da Alemanha que não escondem seus mortos, falou da Cantábria, dos velhos amigos, do seu país branco e longícuo que recebeu arrasado o corpo e o sangue do Garcia Lorca.
Juro que sem estas tardes estaria entregando, de bandeja, minha carne aos vermes.

Abraços do Eladio

PS: Salud, velho amigo Bigonha. Gosto de compartilhar com você alguns símbolos morais deste e outros mundos possíveis.

Imagem: Rachael / Eladio Oduber. Fev. 2007




sábado, fevereiro 10, 2007

Vitrines

“Seus olhos são verdadeiramente lindos; que pena que você só esteja interessada no meu dinheiro”
Falei assim a semana passada a uma funcionária do Banco... que, de forma muito simpática, queria me vender um seguro de vida.
As categorias da ação social weberianas sobre fins, valores, tradição e afetividade foram todas relativizadas. A professora Valquiria Padilha (Unicamp) comenta uma entrevista feita pela revista Nova em 2001. Nela aparece o caso de uma mulher que ficou cega em conseqüência de uma doença congênita. Esta mulher relata que o que mais lamenta é não poder mais admirar as vitrines dos shopping centers.
As vezes, a madeira dos nossos valores vem da árvore dos fins alheios. Os shopping centers, tendo sido concebidos como catedrais do consumo, representam para seus “stake e stoke – holders usinas de lucros e para a maioria dos seus consumidores, uma experiência religiosa.
São locais em que se diminuíem os níveis de ansiedade e se tranqüiliza o psiquismo, como gosta de falar o amigo Thadeu de Jesus, consultor da América setentrional.
Nossa mandala psíquica funciona como uma caixa d’água. Uma semana cansativa de trabalho e alguns aborrecimentos do cotidiano familiar são suficientes para que a bóia da caixa trave. e a angustia comece a sair pelo ralo.
Então basta entrar nos templos do neo-protestantismo-pós-globalizado como o Wal-Mart e usar o cartão de crédito.
Nada há de novidade nisto. Não foi por outras razões que a igreja vendia indulgências antes e durante os tempos da Reforma.
Capitalismo ultra-moderno é isso aí. A decisão de ir aos lugares ultrapassa a finalidade de comprar alguma coisa. Não há fins determinados, se vai a eles porque é preciso procurar um sentido ao vazio existencial. Obedecer aos mandatos internos que impulsionam a comprar incondicionalmente e assim sentir o tépido abraço da felicidade.
A funcionária do Banco... sorriu para mim através das rachaduras da sua máscara comercial sorriu, ficou calada e deu-me as costas.
Eu mergulhei na porta giratória com detetor de metais em direção aos reflexos infinitos dos prédios espelhados no Centro Comercial Sul, sem um tostão no bolso, às 14:00 horas de um sol incompreensível.

Eladio Oduber

Conferir: Padilha, Valquiria. Shopping Center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Boitempo, 2006

Imagem: Mulher / Eladio Oduber. Fev. 2007

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Al outro lado del rio...

Provavelmente, só um diretor como Walter Salles Júnior, nascido no Rio de Janeiro, poderia conceber um filme como “Diário de motocicleta” cuja principal caraterística é a completa ausência de pieguice.
Pieguice é uma palavra que não existe no idioma espanhol. A falta de algumas palavras em todas as línguas faz com que as populações incorram em erros estéticos e filosóficos lamentáveis. Certo que a palavra “sentimentaloide” poderia ser um equivalente no espanhol, entretanto, “piegas” possui uma força de síntese e autonomia que a faz funcionar como um “cluster”.
O apelo ao ridiculamente sentimental procura gerar no espectador uma sensação de autocomiseração bastante atrativa e perniciosa. A pieguice é uma marca de certas culturas. Considero, de forma geral, o caráter continental da América Hispânica como piegas.
Não é somente a língua que separa o Brasil de outros países da América do Sul .
Se é verdadeira a hipótese do poeta Federico Percibal que a origem da palavra caráter devemos buscá-la em outra palavra, “cratera”, ou seja, marca, pegada... então nosso caráter piegas pode nos conduzir por ruas estéticas sem saídas.
Estamos atavicamente caminhando sobre os vestígios do apelo ao sentimental fácil.
Entretanto há excepções... O compositor uruguaio Jorge Drexler fez o tema “Al outro lado del rio” do filme “Diário de motocicleta”. Ele supera, em inúmeros sentidos, estes rastos de pieguice continental. A canção é emocionante, harmônica e poeticamente. Na melodia, a fumaça da água calma, a coragem resignada de todos os povos indígenas e o senso de um espírito florescente da modernidade.

Procurar a florescência é maior do que procurar a felicidade. A florescência é um pacto elegante com a nossa decadência, é o reconhecimento honesto de todas as marcas, poeiras, falhas, penumbras, meios tons, e imperfeições do templo que estamos construindo. A superação do “caráter” nacional Latino-americano pasa pela superação da pieguice. Ainda temos muito que aprender do Brasil neste terreno.


Eladio Oduber


PS: Agradeço com alegria à amiga Ana Maria Monteiro pela oportunidade que me ofereceu em conhecer Jorge Drexler. Agradeço a Federico Percibal, por ser amigo, artista e uruguayo.


Dedico este texto com admiração al compinche espanhol Fernando Campos Leza, de la Rioja, nada piegas...


Imagem: Bird parte II / Eladio Oduber. janeiro de 2007