Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Anacoreta

O peso da responsabilidade que a cultura anglo-saxã atribui aos indivíduos espalha algumas miragens ao longo das nossas curtas vidas.
Erich Fromm, por exemplo, tentou nos convencer de que é possível desenvolver o amor se o encaramos assim como um bom músico encara seu instrumento. Praticando diariamente, estudando e cultivando com paciência nosso talento que florescerá na mesma medida do nosso esforço. Em outras palavras; todo depende de nós...
Contrapondo-se a este otimismo individualista estão os sujeitos das estatísticas, que poucas vezes conseguem amar dessa maneira porque o peso do contexto familiar e social lhes retira toda calma e concentração para amar alguém como quem ama um instrumento musical.
Diante da falta de forças internas que um assalariado tem, depois de doze horas de trabalho e três horas de ônibus lotado, para amar ao seu amor serenamente, resta pensar que não é tão má idéia voltar a acreditar nas miragens da cultura anglo-saxã.
Quem sabe, acreditar nas ilusões de ótica ao mesmo tempo que as destruimos, respondendo emocionalmente ao mundo dos fins. Um exemplo: se seu chefe (do tipo Roberto Justus) quer lhe repreender porque você não completou aquela tarefa, você pode argumentar que falta nele algo de sensibilidade artística. Talvez você seja um funcionário impressionista. Paul Cezzane, por exemplo, expôs quadros em que os objetos não estavam totalmente terminados. R.M. Rilke diz que Cezzane tinha pintado algumas maçãs até onde ele conseguia conhece-las, o resto permanecia um mistério.
Então depende de nós transformar nossa qualidade de mercadorias e resgatar nossa natureza silenciosa de sujeitos esquecidos (isto minha amiga Lenise Sampaio sabe fazer bem)
As mercadorias imploram para serem amadas, por isso necessitam urgentes de ideologias. A coisa funciona assim: as mercadorias das vitrines necessitam do marketing para serem desejadas e nós necessitamos das mercadorias pelo mesmo motivo.
Depende de nós intensificar as relações com o mundo, com nossos amores incluindo nossos amigos. Voltar a sentir a purificação estética da existência do musgo como me ensinou Cecilia Oliveira numa noite estrelada.
Depende de cada um largar a presa. É isso que podemos apreender do anacoreta.
Anacoreta = lat. anachoreta = greg. anakhõrêtês = eu me retiro...
Já tinha aprendido com Jhon Seymur: que se não podemos ser totalmente auto-suficientes, pelo menos podemos fazer nosso pão”. Isto já eu faço...
Como não desejo ser anacoreta, amanhã vou me fixar intensamente nos olhos da Cinthia e repetir o velho adágio latino que é a antítese do pirata: “encontrei o porto, esperança e fortuna ADEUS”

Abraços a todos Eladio Oduber

Conferir: Manguel A. Lendo Imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Imagem:
Pimentera incompleta / Eladio Oduber, agosto 2005

PS:
Dedico este texto com carinho aos amigos João Paulo e Flavia.

sexta-feira, agosto 25, 2006

Bella Vista

No ano de 1982 meu melhor amigo na Venezuela, Manuel Castañeda, tinha acabado seu namoro com a jovem Nereida Asunción. Eu, que na época dava mais valor a minha volição do que aos amigos, parti na direção da recém ex-namorada do meu amigo e tentei seduzi-la numa festa. Ela discretamente rejeitou-me. Poucos dias depois, Manuel e Nereida voltaram o namoro, só que agora com um triunfo na mão da Nereida - o melhor amigo do seu namorado havia cedido às fraquezas dos desejos e tentou laçá-la. E, o pior; ela contou tudo para Manuel.
A partir de então um continente gelado atravessou-se entre nós. Passaram-se meses de silêncio até que Manuel tomasse alguma providência a respeito. Uma noite, meu amigo Manuel apareceu lá em casa e, debaixo do braço, uma garrafa de “Cacique”, um rum venezuelano daqueles que assusta qualquer flibusteiro.
Colocamos as armas e os corações na mesa, tratamos do assunto tentando ser razoáveis. A questão se resolveu mais rápido que o esperado, a final a saudade revelou-se maior que o impasse.
Entretanto, de forma inconsciente, decidimos selar nosso encontro com um perigoso ritual...
Lá pela vigésima dose de Cacique Manuel me comentou:
- Você reparou como os filhos da p... da Coca-cola espalharam avisos luminosos em todos os pontos de ônibus da cidade?
A partir desse comentário tomamos as providências para acabar, nessa mesma madrugada, com as propagandas da Coca em Maracaibo.
Saímos às duas da manhã, pichamos e destruímos as duas primeiras, na terceira tentativa um carro da polícia fechou minha brasília verde escura.
Na delegacia, no meio do interrogatório, lembrei-me que havia dias, nem sei porque razão, eu carregava escondido na brasília, uma pistola de plástico muito parecida com uma arma verdadeira. Antes de que os policiais a encontrassem Manuel e eu decidimos comunicar o fato.
Continuando o interrogatório o meu amigo Manuel possuído de uma irreverência etílica pegou um jornal que estava na mesa do delegado e matou uma barata pousada na parede próxima a nós. Resultado: fomos imediatamente transferidos para o presídio de Bella Vista no centro da cidade de Maracaibo.
Chegamos lá às 3:45 da madrugada. Lembro-me da ordem do carcereiro:

- Tire os cadarços dos sapatos, tire também o cinto...

A porta de ferro de uma grande cela escura abriu-se e era impossível dar um passo para entrar porque o chão estava tomado pelos mais ou menos 60 presos que ali dormiam.
Manuel entrou primeiro, depois eu. O carcereiro fechou a grade. Eu, sem poder deitar, acomodei meu pê direito no meio da axila de um corpo estendido e meu pê esquerdo ficou colado no pescoço de um outro corpo.
Como não conseguimos ir além do limiar da cela, o sol das sete da manhã iluminou as ressacas física e moral da noite anterior. Amanheci pendurado nas grades como um animal no açougue.

Os quatro dias que vivi no presídio de Bella Vista, eu conto outra noite.

Abraços do Eladio

PS: Este texto e sua imágem estão carinhosamente dedicados ao meu amigo e grande artista Diego Luiz Santos.

Imágem: Vaso / Eladio Oduber agosto 2006

quinta-feira, agosto 10, 2006

A Chave


Nada há mais excitante e assustador que encontrar uma chave de fechadura desconhecida. Poucos objetos desestabilizam tanto meu equilíbrio ético.

Sem discriminar o tipo de chave encontrado, sempre me invade o desejo freudiano de procurar-lhe um buraco e desenfreadamente provar todas as fechaduras ao meu alcance.

Nestas horas meu otimismo é tanto, que ficaria naturalmente satisfeito se, depois de poucas tentativas, conseguisse abrir aquilo que a chave perdida guardava tão silenciosamente.


A angustia de quem perdeu uma chave é diferente da angustia daquele que a encontra...O sofrimento do dono da chave é um sofrimento oco, parecido com o desconforto do estômago vazio. A aflição de quem encontra uma chave é semelhante à de alguém que anda só com um canivete numa noite escura. Quem perde a chave teme o corte do canivete na boca do estômago, quem encontra a chave teme o tropeço com o vazio.

Os corações solitários acharam ou perderam suas chaves - metáfora esta de uma pobreza e um didatismo emblemático. Pacientes que sonham com chaves que procuram fechaduras irritam seus terapeutas já grisalhos.

Hoje encontrei três chaves que não abrem fechadura alguma da minha casa. Meu espírito mergulhou num enigma tenebroso: como é que vem parar três chaves que no funcionam no interior do meu quarto ? Em que momento eu tranquei o que quer que fosse e guardei estas chaves?

A impaciência de ter uma chave que não abre fechadura alguma provêm da certeza de que alguma fechadura ela abre e não sabemos qual... por isto temos dificuldade de desfazer-nos dela. Seria como jogar fora a esperança, como desistir do futuro ou abrir mão do nosso intelecto ou dos nossos objetivos existenciais. Jogar fora uma chave solitária é assim como negar os encontros possíveis, fechar as portas para o amor... Portas ?

Estas se fecham com outras chaves bem plantadas na arrogância das suas funções. A fragilidade de uma chave solitária pode ser semelhante à de um velhinho que teve sua mocidade de canalha... quem sabe esta chave, hoje inútil, outrora espalhou o sofrimento e a separação? Isto também é possível.

PS: Larguei este texto durante umas três horas antes de terminá-lo e reparei que mais uma vez Walt Disney agendo-me a alma. Lembrei–me que segunda feira tinha visto Piratas do Caribe II. Para quem não viu o filme trata-se da história de uns piratas que ficam procurando e brigando por uma chave que abre um cofre em que está o coração do mal...vai tomar ... !

Eladio Oduber


Conferir: nada, nenhum livro... talvez alguém possa ligar para o Leo, ele sabe bastantes histórias de piratas.


Imagem: A Chave / Eladio Oduber 2006

segunda-feira, agosto 07, 2006

Monólogo com Narguilé


“Onde estiver vosso tesouro, aí está vosso coração” Lembrava Nietzsche na sua “Genealogia da moral”. Encontros humanos são também eventos metafísicos preenchidos de “sons exclamatórios” (Greeson), melhor ainda quando o silencio manifesta-se. É o grande momento da amizade. Depois poderão vir o sono, o orgasmo ou a morte.

Os objetos, também silenciosos, lançam perguntas que mais são cavalos de Tróia e quando os aceitamos revelam-se pesadas mochilas. E dentro, seus “aprioris morais”.

E nossos tesouros, onde estão? onde estão nossos corações? Ontem, Carlos Gardel ao fundo, confirmei que a diferencia entre a geração do meu pai e a minha foi apenas de três ou quatro tangos. Apenas isso foi o que consegui...cantar três ou quatro tangos a mais do que o velho Eladio. E graças a Deus aí ficou... Ana Cecilia não vai dar continuidade a este reino das metáforas dolorosas.

Sim, meus tesouros, templos e lampadários dos desejos mais caros, quanto se afastou de vocês meu coração!!
Não estou triste , estou com saudades. Esta diferença não existe nos tangos, a aprendi no Brasil.

No final da noite, a graciosa fumaça do nosso Narguilé era a alma do Emperador Adriano nos seus últimos dias:


”Pequena alma tenra e flutuante
Hospede e companheira do meu corpo,
Vais descer aos lugares pálidos duros nus
Onde deverás renunciar aos jogos de outrora...

P. Élio Adriano, Imp.

PS: Aos queridos amigos das "narguileituras" Jesse, Leo, J. Paulo, Paula, Flávia, Luciana, Cecilia. A minha amada Cinthia.

Conferir: HULAK, Samuel. Entrevista: mitos, métodos e modelos. OEDIP: Recife, 1988
YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1980.


Imagem: Narguilé / Eladio Oduber. Agosto de 2006