Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

quinta-feira, dezembro 20, 2007

A estátua da noite


A estátua da noite tem dois filhos nos braços. A morte e o sonho. Um dorme profundamente, o outro finge dormir.

Aquele que dorme aceitou seu destino, nada teme;

Aquele que simula o sono combate a brevidade da vida construindo uma moral que o perpetue;

O filho que dorme não pode voltar atrás;

Quem finge dormir perde a noite reconstruindo os gestos do dia anterior;

O do sono profundo não tem remorsos;

O filho acordado cultiva a má consciência;

Quem dorme é nada;

No coração de quem finge jorra a esperança;

Quem dorme abraça o dogma;

Quem finge dormir é metáfora viva;

Perfeição e imperfeição separam a morte da vida, nessa ordem.

Onde iremos parar, nós, vivos, com as nossas “crises de entusiasmo”?

Onde iremos parar, nós, mortos no ápice da nossa parcimônia?

Entre nós estão os vivos, e, entre nós, os mortos. Para distinguir um dos outros basta colocar a chama de uma vela na boca dos cadáveres ou, perto dos lábios de quem finge, uma boca em chamas.

Boa noite a todos. Eladio

Conferir: “Vida e morte” GARGANI, Giorgio A. In: As palavras no tempo. PEPE Dunia & De MAIS, Domenico. Rio de Janeiro: José Olympo, 2003.

Imagem: Mulher / Federico Percibal. Brasília, julho de 2001.


domingo, dezembro 16, 2007

A propósito da feiúra

Há textos que se nos apresentam superando qualquer possibilidade de compreensão estética.

Um texto, da mesma forma que um quadro ou uma imagem, manipula a visão, mexendo propositalmente o nosso foco.

Qual é o diálogo que propõem estes textos? O agir estético de alguns autores parece reverberar dentro de uma linguagem compartilhada. No Brasil a piada que venera o sexo vai acompanhada da humilhação do inimigo ideológico ou de classe.

Há escritores que escrevem para iletrados. Pessoas que somente entendem a vida através de informações velozes e sem transcendência. (sou um deles em vários momentos do dia).

Todos os elementos, nestes escritos, são totalmente esperados. Digamos assim, são estabelecidas afinidades eletivas infracotidianas. A imagem de uma “madame” puxando um cachorrinho de raça, por exemplo.

Que sensação e quais significados transmitem estes escritos? É indizível. Talvez fique a impressão de certa irresponsabilidade. Ocupar o espaço público com opiniões que pertencem ao âmbito da vida privada.

A liberdade de expressão pode ser interpretada dessa forma: falar abertamente das taras pessoais por um canal de comunicação disponível.

É isto que eu chamo de feiúra. Surpreender o leitor com uma ponte de intimidade que ele não pediu. É muito mais belo ficar no nível das “categorias de alta inferência” como a psicologia não gosta.

Meu Deus, para que operacionalizar tanto a alma? Tudo bem, o escritor forçou a barra, procurou uma intimidade desconfortável, espalhou sua feiúra, e agora, nós leitores temos que limpar a rua, arrumar o caos, passar vassoura.

O que ofende nesses autores é a falta de representações. Fico me perguntando; qual é a finalidade de um escritor didicar-se a retratar características singulares reconhecidas? Isto deveria ser proibido!

É exatamente igual que jogar uma lata de cerveja pela janela do carro. Assim, deveriam também ser proibidas as fotos dos passaportes.

Nestes escritores tinta branca sugere luz, tinta escura sugere sombra, e assim por diante... Qual templo irá suportar tal quantidade de convenções? Um banheiro público, talvez.

Quando embarco num desses textos me pergunto, assim como num pesadelo, Onde estou? Que lugar é este? Por que estou contemplando o vazio desta paisagem?

Logo, à semelhança das cigarras, deixo que minha carcaça me suplante e continue observando a feiúra na sua infinita trivialidade.

Abraços do Eladio.

Conferir: MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

Imagem: General. Eladio Oduber. Nov. 2007

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Sobre a arte de generalizar



Em um post anterior lembrei de Jorge Luis Borges que contava a história de um rei que encomendou a seus cartógrafos um mapa bem preciso do reino. Os cartógrafos trouxeram-lhe uma, duas, três versões que foram rejeitadas pelo monarca porque, segundo ele, faltavam nos mapas inúmeros detalhes como árvores, casas, pedras, etc. A certa altura os cartógrafos perguntaram-lhe porque insistia em ter um mapa tão detalhado do reino? porque não ficava com o reino “real”?

Pode-se dizer então que este rei não gostava de generalizações, ele era obcecado pelas particularidades do seu reino. Os cartógrafos não entendiam, ao final, qual era a finalidade do rei ao exigir um mapa tão pormenorizado do reino.

A questão reside ali. Quais são as finalidades que queremos alcançar quando generalizamos ou quando particularizamos?

Depois do construtivismo e sobre tudo depois da obra de Bruno Latour, sabemos que finalidades científicas e políticas nunca, na história de ambas atividades, foram coisas diferentes. Quem faz ciência sempre faz política. Pode ser que o contrário não seja verdadeiro.

A questão não é tão fácil de ser resolvida. O raciocínio dedutivo e o indutivo há tempos se complementam nas chamadas ciências humanas e sobre tudo no direito. Parece que o único campo que resiste a participar destes vasos comunicantes é a filosofia (aqui estou generalizando, com a finalidade política de provocar. Vejam como a sociologia é mais honesta na declaração de intenções).

Particularmente acho a implosão de certas generalizações muito louvável. Por exemplo, os antropólogos conseguiram, estudando sociedades “particulares”, quebrar as idéias universalizantes da “inveja do pênis” ou do “complexo de Édipo” como sendo processos inerentes aos seres humanos.

Vejamos que por trás das generalizações sempre há objetivos políticos latentes. No caso do Freud os objetivos eram da racionalização ou consecução da hegemonia de gênero. Foram as mulheres antropólogas que conseguiram dar o troco ao pensamento machista freudiano.

Na filosofia e na ciência generalizar tem sua utilidade. A obra inteira de Max Weber está sustentada em grandes generalizações, assim como a obra de Karl Marx. Cada vez que um estudante acusa a qualquer um destes “totens” de terem generalizado sempre há um professor de plantão que sai a suas defesas alegando que estes autores tinham apenas a intenção de construirem seus objetos de estudos à semelhança de um mapa. Eles não queriam tratar das pedras, das arvores, dos animais..etc. É o mesmo enigma do rei e dos seus cartógrafos.

Se a coisa de generalizar ou não generalizar fosse tão fácil assim não haveria profissões no mundo que entram e saem de cena ao longo da história. Por exemplo, os mecenas dos filósofos e dos sociólogos foram acabando ao longo da história por que ambas disciplinas não sabiam outra coisas a não ser generalizar. (novamente estou generalizando) Alguns departamentos de sociologia das universidades mais antigas de Estados Unidos como é o caso da Universidade de Yale foram fechados por que a “sociedade” (leia-se o Estado que financia) não entende qual é, ao final, a utilidade destes generalistas. Isto é, num mundo que há mais de três séculos progressivamente foi precisando de profissionais especialistas, aqueles que somente foram treinados para generalizar foram ficando sem financiadores. Com isto a humanidade perdeu?

Sim, perdeu muita coisa. Sobre tudo a capacidade de refletir sobre seus fundamentos.

Muitas generalizações também são burrice e foram muito perniciosas ao mundo durante muito tempo, e, graças a aqueles pensadores que particularizaram foram banidas do pensamento social. Por exemplo: As mulheres são isto ou aquilo. Os nordestinos são isto ou aquilo. Os homossexuais são, etc, etc. Os negros são, etc, etc.

Outras generalizações também são odiosas e denotam uma atitude arrogante e preconceituosa de quem as veicula por exemplo:

a) Ser intelectual é uma coisa louvável em si mesma;

b) Ser leitor é uma coisa boa em se mesma;

c) Saber apenas um pouco de política cotidiana é uma coisa ruim em se mesma;

d) Não conhecer filosofia ou literatura é vergonhoso;

e) ler e ser culto é um objetivo de vida a ser perseguido;

Conheço seres humanos que sabem muito de política, literatura e filosofia e dos quais não gostaria de me aproximar um milímetro.

Moral da história: generalizar é um ato político, é necessária uma dose de honestidade intelectual para reconhecer isto. Quando um pensador generaliza tem objetivos muito claros. Se é esperto poderá reconhecer que, por vezes, podemos olhar as arvores e não somente o bosque. Olhar as árvores nos permite, muitas vezes, superar pré-julgamentos que nos tornam verdadeiramente cegos, obcecados, mulas sem cabeça.

Abraços do Eladio Oduber - Sociólogo

Imágem: Parcialidad / Eladio Oduber. Novembro 2007 (construido a partir de um quebra cabeça da Ana Cecilia)