Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Bird

Alguns artistas têm o privilégio de ver o mundo passar em câmera lenta diante dos seus olhos. É como se tivessem nascido com uma dose de chá de cogumelo no córtex cerebral. Outros que não nasceram com este privilégio, simplesmente tomam chá de cogumelo. Se bem que, falar do chá de cogumelo delata a geração a que pertenço. Os jovens leitores farão as adaptações pertinentes.
Parece-me este o caso do Dostoiévski por quem desenvolví um temor inexplicável. No instante em que escrevo este blog leio a pg. 123 de
“O Jogador” na edição brasileira da L&PM Pocket. A vovô Antonina Vassilievna já chegou no casino das águas termais e submeteu aos seus desígnios cada um das personagens da trama...

A cada palavra da Antonina fica desvelado o “catecismo das virtudes e dos méritos do homem ocidental civilizado”. Lembrei-me do Vítor Hugo que, em dias alternados, tomava um punhado de moedas e em voz alta dizia; “ eu ganhei vocês... falo isto para que fique bem claro quem é dono de quem”
Pessoalmente agradeço às falas destes artistas as luzes sobre o que se considera o principal mérito desse homem ocidental civilizado: a adquisição de capital...
No cortejo, as outras virtudes: trabalhar muito e honestamente, ficar a tal ponto honesto que o mundo apresente sua mão aberta para receber nossa palmatória. Ler livros de auto-ajuda, submeter nossos impulsos aos chavões sentimentais. Ir à academia, sair de férias, fazer acupuntura para aliviar o peso nas costas.
Ser cordiais, engolir sapos, baratas, combater os vícios do corpo, ignorar os vícios da alma. Ter ciúmes da esposa, e continuar a edificar este mundo com a resignação de um tatu.

Abraços do Eladio Oduber

Conferir: qualquer livro do Feódor Dostoiévski

Imagem: Bird / Eladio Oduber . Enero 2007.


quinta-feira, janeiro 11, 2007

O profeta

Desprezava a sociologia por que não entendia qual era, ao final, a utilidade deste saber. Por isso, conformou-se com a definição escolar que a sociologia é a ciência que estuda a sociedade.
Não tinha nenhuma preocupação em esconder seu preconceito contra aqueles que ganham o sustento dentro de uma repartição pública. Não desejava para si esse papel de assalariado do governo e cultivava um sentimento hipócrita sobre o interesse pelo poder e pelo dinheiro.
Entretanto, em algum momento, viu-se obrigado a vender suas mais intimas convicções.
Aceitou o convite do diabo e sentou-se à mesa com uma colher de cabo curto. Não conseguia encará-lo face a face, e, ao mesmo tempo, tremia por algum reconhecimento.
Observou tudo com exagerada insistência e, assim, perdeu a sua dignidade de cavalheiro. Sabendo que, para perder uma coisa era necessário tê-la antes. Disto também não tinha certeza.
A água dos rios corre eterna e desordenadamente até as pontes serem feitas, depois, por ironia, as pontes tornam-se as referências. Então, “muita água correu debaixo das pontes” diz o povo.
“Cabe à gentalha fazer o trabalho sujo” escreveu Dostoievski. Tenho a impressão que o profeta procurou uma oportunidade para pulverizar seus patrocínadores e, com esta estratégia, respeitar-se a se mesmo. Lançar uma luz sobre sua existência.

O desprezo aristocrático que tinha cultivado pelo lucro lhe fez pensar que todo dinheiro ficava abaixo do seu caráter. Preferia não receber um salário do patrão imoral, porém, se um cliente imoral comprasse algum dos seus livros a consciência do Profeta estaria livre de culpas. As moedas do lacaio não tem máculas. O dinheiro ganho com a venda das nossas convicções é infáme. O dinheiro que compra as convicções dos outros é apenas, como dizia dona Gladys, o “óleo que afrouxa todas as porcas”, e coloca as lentilhas na mesa, que agora, para serem comidas, o Profeta não precisa mais de colheres cumpridas. O diabo não estava mais lá fora.

PS: A pesar da suspeita que o leitor possa ter sobre os traços autobiográficos deste texto devo esclarecer que as linhas estão “anti-dedicadas”, e, tentam descrever uma personagem nefasta da qual prefiro falar anonimamente e com a menor quantidade de cristianismo possível.

Eladio Oduber.

PS: muitos climas robei do “O jogador” F. Dostoievski.


Imágem: Homens em oração / Federico Percibal. Uruguay - Brasília. 2002.

domingo, janeiro 07, 2007

Café

Cultivar a arte de viver bem pressupõe desconfiar muito de se mesmo. Isto é, enquanto a mão direita mexe na panela da exuberância do espirito a mão esquerda prova o guiso da orgia intelectual. Em termos práticos, o bem viver, já diziam os antigos pela voz do meu recém amigo Mariano, se resume a dois movimentos. O primeiro, relacionado com um tipo de exagero interior, a “euforia”, em que tragamos com gula a cornucópia do mundo. Melhor dito, encontramos os amigos, fumamos, tomamos cerveja, estudamos, flertamos, pechinchamos, cochilamos, tornamos a vida densa e acre.

O segundo movimento é relativo ao mundo externo, a “disforia”. Uma sorte de vomito expressivo que propiciam os caldos estomacais que, por sua vez, expulsam as representações das representações. Em outras palavras, abrimos o dique das nossas pestilenciais defecando a ópera do lirismo interior. Um poema, um quadro, um gesto. Assim como o autoritarismo tem sua fonte no auto controle, a liberdade nasce da auto desconfiança.

É preciso, muitas vezes, duvidar dos desejos, dos motivos que atribuímos às nossas ações.
Deixar, então, que o telos eufórico e disfórico realize seu ciclo, dinamize o rumo da vida a ser vivida, se manifeste através de nós, frágeis instrumentos.

Eladio Oduber.


Recomendo bater um papo com: Mariano, Leo Pimentel, Sandra Kretly, Cecilia e Cinthia Oliveiras e Solange Miguel Marcondes Armando.

Ler: GRAF, Christine & GRAF, Dennis. "Café Life in Paris: a guide book to the cafés and bars of the city of light". Massachusetts: Interlink Publishing, 2006.

Escutar: Driftin (the Blue Note Years) Herbie Hancock


Imágem: Invierno / Eladio Oduber. Novembro, 2006