Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

domingo, março 26, 2006

Portrait

“A loucura não ri de se mesma”. (Cinthia M. R. Oliveira & Cecília M. R. Oliveira)

Ernesto Sábato afirmava que um bom autor vence seus maus tradutores. É possível “morrer de paixão trágica” pelo Shakespeare mesmo sendo mal dirigido, representado por atores ruins ou com um péssimo cenário.

Enquanto os bons autores se defendem dos maus tradutores os maus autores procuram, pelo menos, um mau tradutor. Outros, que nem sequer são autores, procuram traduzir-se a se mesmos. E outros que não atentaram nem para auto-traduzir-se, andam pela vida atuando com algum “script” que o mundo lhes designou.
A final de contas, é a vida de cada um, que as pessoas enxergam como “obra” ou como “rascunho”.
Há quem inventou propósitos para sua vida e morre com a ilusão de ter influenciado as circunstâncias e há quem viveu sem propósitos e morre pensando que fez tudo o que se propôs. Há pessoas normais que preenchem seus dias com infinitas tarefas, não tem paciência para lembrar dos sonhos e são conduzidas pela objetividade. Há pessoas esquizofrênicas que padecem de manias persecutórias sendo orientadas pela sua subjetividade.
Houve filósofos radicais como Alfred N. Whitehead que considerou toda filosofia européia, apenas, como um desdobramento das idéias de Platão e pensadores otimistas como S. Freud que morreu com a esperança de que a neuro-cirurgia revelasse o local exato em que se encontrava o inconsciente.

Houve espíritos como Nietzsche que refugiaram-se em se mesmos preservando suas aspirações, gostos particulares vivendo no culto secreto de algumas artes. E artistas como Marc Chagall que pintaram o amor na sua versão mais ininteligível.

Sendo assim, criei uma oração que me acompanha e tranqüiliza e que ofereço a vocês meus queridos amigos de viagem:

Minha ira não tem mais nobreza,
Quero aceitar as ofensas de bom grau e viver dentro de uma legião absoluta de maus entendidos;
Deixar o ímpeto das jovens paixões, para obter o botim das guerras: as belas escravas;
Dos objetos preciosos tenho pena, a cólera que me movimenta vai se transformando em frio desapego;
Espectador de me mesmo exumo as gargalhadas e morro de saudades dos velhos amigos;
Meus propósitos são desculpas. Se, nos momentos finais da vida, cair na tentação de pensar que fiz o que me propôs, darei licença para que coloquem na lápida do meu túmulo:
“A vida deste homem não valeu nada”.

Beijos do Eladio

Imagem: Telonius Monk / Eladio Oduber 1995

domingo, março 05, 2006

Loxodonto brasiliense

Ana Cecília mergulhou, faz tempo, no mundo dos elefantinhos de pelúcia e hoje decidiu olhar de perto um elefante de verdade. Animal elegante e delicado. Mais do que o hipopótamo que parece uma batata suspensa em quatro palitos curtos. Os egípcios e os chineses gostavam de colecionar animais exóticos e a cultura ocidental herdou esse hábito de enclausurar animais para serem observados. Foi uma atitude previsível dos conglomerados humanos que aglutinaram-se nas cidades necessitando olhar, no meio à rotina urbana, seus arquétipos vivos.

As elites financiadoras de viagens sempre precisaram de “evidencias”, “mostras”, “coleções”, em fim... pedaços de humanidade e de natureza dos locais “descobertos” que ajudassem a “reproduzir” esses lugares na metrópole. É a acumulação de informação, riqueza e o roubo histórico na relação centro – periferia.

Nesse circuito do espolio, surgiram personagens curiosos como foi George Psalmanazar, viajante franco-assírio, comedor de carne crua muito temperada que escreveu um tratado em 1704: “Uma descrição histórica e geográfica de Formosa” tornando-se uma celebridade entre os oficiais e a corte inglesa do sec. XVIII. Foi convidado pela universidade de Oxford a dar aulas da a língua de formosa “formosiano”. Mais tarde os geógrafos e missionários duvidaram do seus estudos e o acusaram de plágio. Foi chamado a se defender na Sociedade Real de Geografia Inglesa e, no entanto, conseguiu provar que seus acusadores estavam errados.

George Psalmanazar foi sim um grande mentiroso e sua obra passou a ser conhecida tal vez como o maior caso de plágio já conhecido nos meios acadêmicos. Sua versão sobre a vida e a cultura do povo exótico da ilha de Formosa adquiriu tremendo impacto por que ela foi concebida com as imagens e as caraterísticas que as elites inglesas tinham imaginado e construído sobre o que “deveriam ser” os povos distantes.. Este tipo de situação aparece novamente nos relatos que o Cristovam Colombo e Américo Vespúcio fizeram do Novo Mundo para seus respectivos “sponsors”. Em verdade, Vespúcio “recriou” de forma mais literária suas visões sobre o “descobrimento”. Colombo, entretanto, foi mais “objetivo” mais “verosímil” e por isto “decepcionou” aos seus patrocinadores. Segundo Tzvetan Todorov isto ajudaria a explicar, entre outras coisas, o porque do nome América e não Colómbia para nosso continente.

Ana Cecília aproximou-se do elefante da mesma forma como a semana passada o fez de um aquário num shopping da cidade. Papai olha a Dóris!!, papai olha o Nemo !!!. Comecei a sentir pena dos outros peixinhos anônimos sem história, sem personalidade, sem sonhos. Hollywood domesticou o suficiente estes bichinhos assim como Esopo o fez na antigüidade. “Irmão Urso”, “Procurando Nemo”, “Spirit”, “Bambi”, “Dumbo”, ”Chiken Little”, são alguns exemplos desta escalada antropomorfizadora.

A literatura de Psalmanazar e a humanização que Hollywood faz do mundo animal, foi e é bem sucedida porque fala e trabalha com aquilo que se deseja muito... No final da nossa ida ao zoo Cinthia me fez um comentário alucinante. "As pessoas não vem ao zoológico a ver os animais elas querem ver o ócio dos animais..." Isto último é outra coisa que, todos os dias da nossa vida, desejamos muito.

Abraços do Eladio e Cinthia

Referências:

TODOROV, Tzvetan. (1989) Fictions et vérites. L'Homme - Revue française d'Anthropologie, n° 111-112.

"Orientalism as Performance Art: The Strange Case of George Psalamanazar" By: Jack Lynch, Acesso em 05/03/2006. Disponível em: http://andromeda.rutgers.edu/~jlynch/Papers/psalm.html


Imagem: Max Ernst - Celebes or Elephant

sexta-feira, março 03, 2006

CAVEAT EMPTOR

Existem coisas misteriosas no proceso da descoberta científica, existencial ou filosófica, e existem pessoas interessadas em que essas (des)cobertas não sejam feitas.

Por exemplo, A polêmica entre a Igreja e Galileu Galilei se resumiu à luta pelo monopólio da linguagem que permitia o conhecimento do universo. Digamos assim, o latim, que era a lingua que Deus entendia, versus a geometria que era a lingua proposta por Galileu para entender as coisas de Deus. Assim, a possibilidade do surgimento de outros interlocutores divinos na terra, obviamente, não agradou aos despachantes da burocracia celestial.

Outras coisas não menos misteriosas observei, por exemplo, na descoberta do mundo que Ana Cecília fez nestes quatro anos. Por que uma rosa vermelha pode ser tão assustadora? Alguém mora na coluna do elevador do prédio? Porque as vezes, não temos nada no bolso da camisa?

Cornelio Marques, índio Warao, ficou em silencio observando os gestos de outro indígena que serrava uma tábua de madeira bem longe da canoa em que estávamos. Quando nos aproximamos ficamos sabendo que alguém da família tinha morrido. Cornelio descobriu isto apenas observando a forma incomum como aquele índio estava cortando a tábua para fazer o caixão.

Michel Foucault descobriu que, ao longo da história, a punição
sobre os corpos dos infratores foi “volatilizando-se”, pelo menos teóricamente, até virar o seqüestro da liberdade do réu, uma punição de maior “abstração”.

Norbert Elias concluiu que, a partir do século XIX, os corpos dos animais de caça foram desaparecendo das mesas e virando pedaços irreconhecíveis de carne nos pratos.


Armando Reverón, pintor venezuelano, descobriu que apertando fortemente a cintura com uma corda e tampando os ouvidos com pedaços de sabugo conseguia separar o mundo idílico do mundo volitivo antes de iniciar uma sessão de pintura.


Cinthia, que gosta de puxar os fios das meadas, falou-me nesses dias que podemos considerar os párocos das igrejas como pequenos prefeitos que, principalmente, cuidam muito bem e prestam contas do dinheiro da paroquia. Descoberta simples e misteriosa assim como são as descobertas da antropologia.


Séneca descobriu que as pessoas perdiam o tempo nas janelas procurando em qual casa o pretor tinha cravado sua lança. Desde aquela época, falar das pessoas que devem alguma coisa é um esporte humano.

Os norte americanos, sendo uma cultura de comerciantes, e por isso mesmo, descobreram, faz tempo, que devemos ter cautela com alguém que queira nos vender "alguma coisa" por isto repetem o adágio latino "caveat emptor" - cuidado com o vendedor !!!.


Abraços do Eladio e Cinthia

Imagem: arranjo Warao