Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

domingo, março 09, 2014

A pesquisa “Cinema: o que os cariocas querem ver”



Uma pesquisa feita pela JLeiva Cultura & Esporte com 1.501 habitantes do Rio publicada no site: http://oglobo.globo.com/cultura/riofilme-vai-incentivar-producoes-de-filmes-de-acao-11713581#ixzz2uTiawAj7, chegou às seguintes conclusões: “A produção cinematográfica brasileira vive um evidente contra-senso há pelo menos três anos. Entre janeiro de 2011 e dezembro de 2013, o país assistiu ao lançamento de 294 filmes nacionais. Deles, 119 (40%) eram dramas, e 100 (34%), documentários. Esses dois gêneros não aparecem, no entanto, na lista dos preferidos do grande público”
“(...) Por outro lado, 24% dos moradores do Rio se dizem fãs incontestes de filmes de ação — o gênero mais popular na lista das preferências, seguido de perto pelas comédias, com 22%. Apesar disso, nos últimos três anos, o Brasil teve apenas 11 lançamentos nacionais de ação, ou 4% da produção. Para os diretores da Rio Filme, é hora de mudar (...)”. Estes achados postos, pergunto-me. “é hora de mudar” o que?
Eu acredito na ciência como criadora de alguns modelos explicativos, eu acredito em amostragens bem planejadas. Incomoda-me a forma como foi redigido o artigo pelo (a) jornalista ao falar que o “grande público” opinou tal coisa... Ou que os “moradores do Rio” escolheram tal outra... etc.
Em primeiro lugar, 1.501 pessoas não são nem o “grande público”, nem são os “moradores do Rio”... Tudo bem, tudo bem, não vou brigar com os estatísticos... Suponhamos que a amostragem foi bem desenhada e que ela “representa” os espectadores que consomem filmes brasileiros no Rio de Janeiro. Mesmo assim, quem redigiu o artigo deveria sempre referir-se à “amostra consultada”. Desta forma, não se corre o risco de enviesar a argumentação. É obrigação de aqueles que lançam mão do raciocínio científico lutar pela clareza na hora de expor resultados de pesquisa. Falar neste caso da “amostra consultada” permite ao leitor lembrar sempre das limitações que toda pesquisa por amostra traz no seu DNA. Por tanto, uma informação importante omitida no artigo foi a margem de erro da pesquisa. Isto é, se fosse possível consultar à totalidade do universo dos espectadores cariocas, provavelmente as respostas do universo se afastariam em tal ou qual porcentagem das respostas coletadas.
Fico muito impressionado que seja um francês, Adrien Muselet, diretor comercial da Rio Filme, que defenda que “o financiamento dos filmes está totalmente desconectado do interesse do grande público...” Quem diria. Um francês... E o glorioso cinema francês ao longo da sua história conectou-se assim ao grande público?
Que bom que não o fez. Do contrário a história do cinema mundial não teria conhecido Os Cahiers, nem a Nouvelle Vague. “estamos sempre sós” escreveu Godard em 1958.
O chamado “grande público”, sabemos, é conservador quase que na sua essência. Mesmo os empreendimentos que mais dependem dele para sua sobrevivência como é o caso do mundo da informática, da moda ou da gastronomia, investem a “fundo perdido” em pesquisas cujos resultados não estão imediatamente atrelados ao gosto popular, tudo o contrário. Dão passos dilatados na direção de tudo o que é desconhecido ou não imaginado por esse “grande público”.
No campo das artes, a relação: público / obra adquire formas ainda mais paradoxais.
Basta imaginar um Artaud, Shoemberg, J.L. Borges, Stravinsky, Bergman, Chagal ou Manoel de Barros, tentando conectar-se aos interesses do “grande público”.
Em verdade, e como assinalava U. Eco; Todos nós, em algum momento, fazemos parte de este “grande público”. A questão não é que a obra de arte deva conectar-se com o “grande público” a questão é que esse “grande público” deve ser amparado por um substrato em que as possibilidades de estudar, vivenciar, ter contato com diferentes modos de expressão artística, científica e filosófica sejam um fato normal e corriqueiro. Ao ponto de que aqueles chamados por Victor Hugo os “nervos expostos da sociedade” que são os artistas, revelem e presenteiem à sociedade com seus insights estéticos e éticos. E que, mesmo pertencendo a um grupo de “privilegiados” por viverem dos seus produtos simbólicos, se lhes reconheça e assegure a garantia de uma vida digna, face ao risco espiritual e psíquico que concentra o decoro e a coragem de realizar o que chamava Salvador Dalí “Lo creado”. Essa vida digna nos os brasileiros e estrangeiros que pagamos impostos conseguimos oferecer, por exemplo, aos congressistas, aos tecnocratas do estado (que inventaram, por exemplo, o horário de verão para infernizar nossas vidas), aos cientistas pesquisadores, famílias vulneráveis etc. Por que uma sociedade deveria ser tão obtusa ou estúpida a ponto de negar apoio a produtores de símbolos como são os artistas do cinema? Mesmo que esses símbolos requeiram por parte do público que os recebe maior interpretação, concentração, esforço e coragem estética para desfrutá-los?
Não se lhe exige à matemática, nem à física, nem à geologia, nem menos ainda à mecatrônica que, de forma imediata, se conecte aos interesses do “grande público”.
Lembremos da história do poeta Maiakovski quando numa “turnê” pelo seu país fez um recital de poemas no meio de operários. Na ocasião, lhe foi perguntado por que não fazia poemas mais acessíveis à classe operária? O poeta respondeu que lhe estranhava que essa exigência não se fizesse às ciências, e por tanto, aconselhou aos operários estudarem mais se desejassem entender seus poemas.
O secretário municipal de Cultura do Rio de janeiro, Sérgio Sá Leitão e o diretor comercial da Rio Filme, Adrien Muselet, estão interessados em contribuir para o aumento do market share do cinema brasileiro. Isto não é um pecado. O pecado é estes senhores não estarem também interessados em que o Brasil contribua para o cinema mundial com propostas e descobertas éticas e estéticas. Isto último o cinema francês fez com galhardia e boa parte graças ao apoio do Estado. Sabemos que o caminho íngreme na direção de estas contribuições sempre é paralelo e alternativo ao chamado gosto do “grande público”.
No cinema, assim como em todas as artes, o criador que vai na direção do que o “grande público” espera, estabelece uma comunicação “incestuosa” com seu receptor. Dificilmente “sangue novo” entra nas veias da arte que quer agradar.
Entretanto, para aqueles que estamos acostumados a criar com pouco ou nenhum apoio de quem quer que seja, Salvador Dalí deixou-nos um norte nestas palavras: “A alma do artista fortifica- se com aquilo que a sujeita e desabotoa no meio daquilo que a nega”   

Bons sonos, bons sonhos.


Eladio Oduber sociólogo e músico (sempre a procura de patrocínios)