Ode ao lusco-fusco ou homenagem a Howard Becker
Tanto faz abrir ou fechar os olhos no escuro. É sempre o mesmo tremular de manchas luminosas que põem a audição em alerta. Já não é mais possível distinguir entre o que as pálpebras escondem e o que revelam. Para estabelecer os contornos da fronteira basta a chama bruxuleante de uma vela. Muitos pintores clássicos usaram esse recurso para desnudar as dimensões aconchegantes da intimidade e resguardar a amplidão pouco criteriosa do que é facilmente constatável, do que é inequívoco, do obrigatoriamente explícito.
A luz intensa e a profunda escuridão possuem o mesmo dom de exasperar a visão. Armando Reverón dedicou parte de sua vida a revelar a intangibilidade dos contornos das coisas submetidas à reverberação do meio-dia, que também é personagem constante da obra de Gabriel Garcia Marquez.
Também a ciência transformou em astros muito mais poderosos que o sol as estrelinhas que apenas de leve furam a textura homogênea do negrume da noite.
Diariamente testemunhamos a passagem da luz à escuridão, ou vice-versa. Quase ninguém conhece o termo nictêmero para expressar o período de 24 horas que vai de uma alvorada à outra. Nossa divisão do tempo é quantitativa: cada fração de 60 minutos chama-se hora. Acontece que nove horas servem tanto para indicar um momento do dia quanto da noite. Mas também é possível distinguir sem qualificar: basta dizer nove ou 21 horas e está separado o dia da noite: ou o inglês do francês.
Na maior parte do tempo, não nos guiamos pela intensidade da luz. Baseamos nossas vidas na imparcialidade dos números. No inverno ou no verão, não precisamos olhar para fora, pela janela, para saber das horas: é o relógio que nos mostra o tempo. Analógico ou digital, o relógio nos informa que o tempo é cíclico, inequívoco, inexorável, preciso e pontual. Quem se adianta ou atrasa é o sol – que acorda mais tarde no inverno e mais cedo no verão. Também pode sair cedo demais no inverno e se prolongar muito no verão. A hora em que o sol nasce e se põe pode variar segundo as estações e os hemisférios. Mais inconstante ainda é a luminosidade: as nuvens podem fazer o meio-dia passar incógnito.
Alba, alvorada, alvorecer, nascer-do-sol são difíceis de precisar: o sol vai nascendo e, de repente, já nasceu. O mesmo acontece com o ocaso, o crepúsculo, o pôr-do-sol. O sol vai se pondo e quando vemos já é noite. Muitas vezes, parece que, no anoitecer, o sol começasse um longo bocejo que terminasse com um súbito fechar de pálpebras.
Tudo isso é muito poético, mas será que dá pra confiar? Tomar o início e o fim da luz do dia como referência exigiria ajustes diários às variações que podem ser de apenas um segundo, mas também podem ser de horas. Falar assim é suficiente para tornar patente nossa escolha: entre o quantitativo e o qualitativo, optamos pela precisão. O tempo, para nós, é precioso, e a pontualidade é garantida pelo cadência inalterada e ininterrupta do passar dos segundos.
Na Nova Caledônia, ilha da mítica Oceania, os canaca pensam diferente de nós. Eles têm nomes para os diferentes estágios do fim-do-dia. Eles podem falar com precisão das gradações, das sutis mudanças do claro para o escuro: os muitos termos garantem precisão e segurança para se apreciar as sutilezas dos efeitos luminosos sobre o mundo sensível.
Afinal, estamos falando de um espetáculo, do encontro – ou do confronto – de duas influências poderosas: a luz e as trevas. É uma luta sempre desigual. Sempre haverá um vencedor e um vencido. Mas, mesmo nós, fomos capazes de identificar, e nomear, o momento preciso da equivalência de forças, do empate. É um momento fugaz, de suspense, de absoluta equiparação, em que ainda é dia, mas já é noite. É o tempo talvez para duas piscadelas – lusco-fusco – e já anoiteceu.
Escrevi esse post para falar das abordagens quantitativas e qualitativas na pesquisa em ciências sociais, para homenagear o sociólogo norte-americano Howard Becker, enquanto pensava no ensaio de Darcy Ribeiro, “Sobre o óbvio”, uma obra prima.
Cinthia Oliveira
A luz intensa e a profunda escuridão possuem o mesmo dom de exasperar a visão. Armando Reverón dedicou parte de sua vida a revelar a intangibilidade dos contornos das coisas submetidas à reverberação do meio-dia, que também é personagem constante da obra de Gabriel Garcia Marquez.
Também a ciência transformou em astros muito mais poderosos que o sol as estrelinhas que apenas de leve furam a textura homogênea do negrume da noite.
Diariamente testemunhamos a passagem da luz à escuridão, ou vice-versa. Quase ninguém conhece o termo nictêmero para expressar o período de 24 horas que vai de uma alvorada à outra. Nossa divisão do tempo é quantitativa: cada fração de 60 minutos chama-se hora. Acontece que nove horas servem tanto para indicar um momento do dia quanto da noite. Mas também é possível distinguir sem qualificar: basta dizer nove ou 21 horas e está separado o dia da noite: ou o inglês do francês.
Na maior parte do tempo, não nos guiamos pela intensidade da luz. Baseamos nossas vidas na imparcialidade dos números. No inverno ou no verão, não precisamos olhar para fora, pela janela, para saber das horas: é o relógio que nos mostra o tempo. Analógico ou digital, o relógio nos informa que o tempo é cíclico, inequívoco, inexorável, preciso e pontual. Quem se adianta ou atrasa é o sol – que acorda mais tarde no inverno e mais cedo no verão. Também pode sair cedo demais no inverno e se prolongar muito no verão. A hora em que o sol nasce e se põe pode variar segundo as estações e os hemisférios. Mais inconstante ainda é a luminosidade: as nuvens podem fazer o meio-dia passar incógnito.
Alba, alvorada, alvorecer, nascer-do-sol são difíceis de precisar: o sol vai nascendo e, de repente, já nasceu. O mesmo acontece com o ocaso, o crepúsculo, o pôr-do-sol. O sol vai se pondo e quando vemos já é noite. Muitas vezes, parece que, no anoitecer, o sol começasse um longo bocejo que terminasse com um súbito fechar de pálpebras.
Tudo isso é muito poético, mas será que dá pra confiar? Tomar o início e o fim da luz do dia como referência exigiria ajustes diários às variações que podem ser de apenas um segundo, mas também podem ser de horas. Falar assim é suficiente para tornar patente nossa escolha: entre o quantitativo e o qualitativo, optamos pela precisão. O tempo, para nós, é precioso, e a pontualidade é garantida pelo cadência inalterada e ininterrupta do passar dos segundos.
Na Nova Caledônia, ilha da mítica Oceania, os canaca pensam diferente de nós. Eles têm nomes para os diferentes estágios do fim-do-dia. Eles podem falar com precisão das gradações, das sutis mudanças do claro para o escuro: os muitos termos garantem precisão e segurança para se apreciar as sutilezas dos efeitos luminosos sobre o mundo sensível.
Afinal, estamos falando de um espetáculo, do encontro – ou do confronto – de duas influências poderosas: a luz e as trevas. É uma luta sempre desigual. Sempre haverá um vencedor e um vencido. Mas, mesmo nós, fomos capazes de identificar, e nomear, o momento preciso da equivalência de forças, do empate. É um momento fugaz, de suspense, de absoluta equiparação, em que ainda é dia, mas já é noite. É o tempo talvez para duas piscadelas – lusco-fusco – e já anoiteceu.
Escrevi esse post para falar das abordagens quantitativas e qualitativas na pesquisa em ciências sociais, para homenagear o sociólogo norte-americano Howard Becker, enquanto pensava no ensaio de Darcy Ribeiro, “Sobre o óbvio”, uma obra prima.
Cinthia Oliveira