Flor de Manacá.
Universidad del Zulia, Maracaibo, Venezuela, ano de 1981:
Gostava muito de matar as aulas de sociologia e fugir para os ateliers da Faculdade de Arquitetura onde estudava meu irmão Carlos. Gostava de fazer isto, tal vez, movido por um desejo de respirar, longe das asfixiantes aulas de economia política ou de metodologia da pesquisa... Estes ateliers tinham vida, os estudantes de arquitetura passavam muitas horas neles e, por isso, traziam pedaços dos seus lares; plantas, cafeteiras, toca fitas, colchões, toalhas... Outras coisas também me levavam a Faculdade de Arquitetura, era a fruição artística e emocionada do meu irmão e seus colegas de aula. Pintores, escultores, todos mordidos pelo espírito da contestação e da mistura. Assim, não era raro ver os colegas de Carlos pintando telas, fazendo cenários de peças de teatro ou caminhando com um galo amarrado a uma corda, pelo pescoço, para ridicularizar às jovens “madames” que costumavam levar seus cachorrinhos de raça para as aulas.
Uma tarde cheguei no atelier e encontrei meu irmão e seus colegas reclinados sobre uma mesa grande, falando apaixonadamente sobre o croquis de uma cidade... Conversavam entusiasmados sobre a proposta simples e bela nascida do traço em cruz, sobre a harmonia das escalas, do modernismo, da Carta de Atenas... Pronunciavam em atitude religiosa o nome dos mestres; Lúcio Costa, Oscar Niemeyer. A capital do Brasil apenas saia da sua adolescência.
Essa noite sonhei dirigindo nas “tesouras” de Brasília, foi um sonho premonitório com dez anos de antecedência (devo confessar, sem falsa modéstia, que meu sonho foi topograficamente mais preciso que o de Dom Bosco)
Em 1990, quando cheguei em Brasília minha alma foi imediatamente arrastada por uma “doxa” melancolia. Não era um sentimento ruim, ao contrário, foi uma sensação plena e tranqüila de quem quer se abandonar ao silêncio dos labirintos de um Eu misterioso. O vento frio que me recebeu em Brasília, as cores ocres e pálidos verdes da vegetação, um pouco antes da seca, arrancaram de mim emoções que não queria entregar facilmente porque prenunciavam o início de um amor fundo e duradouro.
Depois veio minha vida na cidade, e o caminhar interminável dentro das suas quadras, toda vez, carregando um palpitarzinho no peito...uma inexplicável vontadezinha de chorar.
Inexplicável só até hoje... quando consegui desvendar o porque destas emoções parecidas a aquelas que sentia no atelier da faculdade... Era óbvio que parte destas sensações vinham do fato de eu ter virado um habitante de carne e osso dentro da “grande maqueta” dos sonhos do meu irmão e seus colegas, porém não era somente isso.
O meu encontro com Brasília era o encontro com uma mitologia por mim desconhecida que me inundava poderosamente e me suspendia irracionalmente acima da vida prosaica.
Hoje, depois de ler um e-mail enviado pelo meu amigo, arquiteto e músico, Bruno Luccini, sobre a vida e obra de Lúcio Costa descobri qual era a origem destes sentimentos.
Pelo e-mail soube que em 1954, uma tarde de viajem, debaixo de uma chuva fina, o carro dirigido por Lúcio Costa derrapou e bateu contra uma árvore. No acidente, sua esposa, Julieta morreu de forma instantânea.
Trinta e quatro anos antes, tinham-se conhecido e cultivado um amor belo e simples como “a florzinha de manacá” que Julieta levava no cabelo o dia em que Lúcio a viu pela primeira vez.
Lúcio Costa carregou a dor e a culpa da morte de sua esposa pelo resto da sua vida. E foi sob este véu de dor mítica que, três anos depois da morte da Julieta, concebe a proposta urbanística de Brasília que ganharia o concurso.
Quem alguma vez leu o plano diretor da cidade sabe a profundidade e poesia com que foi redigido, Brasília exposta com traços femininos, apaixonados, Lúcio Costa a definia como acolhedora, íntima, derramada e concisa.
Sei que a sensibilidade do Lúcio Costa se sentiria agredida com estas minhas deduções, sei que jamais, ele mesmo não se permitiria pensar sequer na possibilidade de ter concebido Brasília como um Tah Mahal brasileiro movido pela dor da perda da mulher amada. Entretanto, desculpe-me mil vezes a memória de Lúcio Costa. Meu coração não me engana, foram já muitas noites de hierofanias nesta cidade, senti desde o primeiro dia a beleza da Julieta nas noites de vapor místico e azul entre os traços livres do cerrado e a eternidade da cosmogonia do Plano de Brasília.
Peço perdão mais uma vez. Extenuado, há tempo vejo a paixão escondida por trás das sinuosidades, da intimidade e derramamento de Brasília que o espírito doce e machucado do artista não conseguiu suprimir numa homenagem à beleza e ao seu amor.
Em 1980, nós, jovens estudantes venezuelanos, em horas de ebulição espiritual, falávamos sobre Brasília como quem conversava sobre um animal empalhado. Nunca pensamos que nos imponderáveis da vida do seu idealizador repousava a flor de um segredo. Lúcio Costa foi embora discretamente, sem confessar sua dor e ao mesmo tempo nos deixando o testemunho da grandeza da sua paixão pela arte, pela beleza e por Julieta. Obrigado Mestre Lúcio Costa.
Eladio Oduber
Imagem: Manacá / Eladio Oduber . Abril 2007
Gostava muito de matar as aulas de sociologia e fugir para os ateliers da Faculdade de Arquitetura onde estudava meu irmão Carlos. Gostava de fazer isto, tal vez, movido por um desejo de respirar, longe das asfixiantes aulas de economia política ou de metodologia da pesquisa... Estes ateliers tinham vida, os estudantes de arquitetura passavam muitas horas neles e, por isso, traziam pedaços dos seus lares; plantas, cafeteiras, toca fitas, colchões, toalhas... Outras coisas também me levavam a Faculdade de Arquitetura, era a fruição artística e emocionada do meu irmão e seus colegas de aula. Pintores, escultores, todos mordidos pelo espírito da contestação e da mistura. Assim, não era raro ver os colegas de Carlos pintando telas, fazendo cenários de peças de teatro ou caminhando com um galo amarrado a uma corda, pelo pescoço, para ridicularizar às jovens “madames” que costumavam levar seus cachorrinhos de raça para as aulas.
Uma tarde cheguei no atelier e encontrei meu irmão e seus colegas reclinados sobre uma mesa grande, falando apaixonadamente sobre o croquis de uma cidade... Conversavam entusiasmados sobre a proposta simples e bela nascida do traço em cruz, sobre a harmonia das escalas, do modernismo, da Carta de Atenas... Pronunciavam em atitude religiosa o nome dos mestres; Lúcio Costa, Oscar Niemeyer. A capital do Brasil apenas saia da sua adolescência.
Essa noite sonhei dirigindo nas “tesouras” de Brasília, foi um sonho premonitório com dez anos de antecedência (devo confessar, sem falsa modéstia, que meu sonho foi topograficamente mais preciso que o de Dom Bosco)
Em 1990, quando cheguei em Brasília minha alma foi imediatamente arrastada por uma “doxa” melancolia. Não era um sentimento ruim, ao contrário, foi uma sensação plena e tranqüila de quem quer se abandonar ao silêncio dos labirintos de um Eu misterioso. O vento frio que me recebeu em Brasília, as cores ocres e pálidos verdes da vegetação, um pouco antes da seca, arrancaram de mim emoções que não queria entregar facilmente porque prenunciavam o início de um amor fundo e duradouro.
Depois veio minha vida na cidade, e o caminhar interminável dentro das suas quadras, toda vez, carregando um palpitarzinho no peito...uma inexplicável vontadezinha de chorar.
Inexplicável só até hoje... quando consegui desvendar o porque destas emoções parecidas a aquelas que sentia no atelier da faculdade... Era óbvio que parte destas sensações vinham do fato de eu ter virado um habitante de carne e osso dentro da “grande maqueta” dos sonhos do meu irmão e seus colegas, porém não era somente isso.
O meu encontro com Brasília era o encontro com uma mitologia por mim desconhecida que me inundava poderosamente e me suspendia irracionalmente acima da vida prosaica.
Hoje, depois de ler um e-mail enviado pelo meu amigo, arquiteto e músico, Bruno Luccini, sobre a vida e obra de Lúcio Costa descobri qual era a origem destes sentimentos.
Pelo e-mail soube que em 1954, uma tarde de viajem, debaixo de uma chuva fina, o carro dirigido por Lúcio Costa derrapou e bateu contra uma árvore. No acidente, sua esposa, Julieta morreu de forma instantânea.
Trinta e quatro anos antes, tinham-se conhecido e cultivado um amor belo e simples como “a florzinha de manacá” que Julieta levava no cabelo o dia em que Lúcio a viu pela primeira vez.
Lúcio Costa carregou a dor e a culpa da morte de sua esposa pelo resto da sua vida. E foi sob este véu de dor mítica que, três anos depois da morte da Julieta, concebe a proposta urbanística de Brasília que ganharia o concurso.
Quem alguma vez leu o plano diretor da cidade sabe a profundidade e poesia com que foi redigido, Brasília exposta com traços femininos, apaixonados, Lúcio Costa a definia como acolhedora, íntima, derramada e concisa.
Sei que a sensibilidade do Lúcio Costa se sentiria agredida com estas minhas deduções, sei que jamais, ele mesmo não se permitiria pensar sequer na possibilidade de ter concebido Brasília como um Tah Mahal brasileiro movido pela dor da perda da mulher amada. Entretanto, desculpe-me mil vezes a memória de Lúcio Costa. Meu coração não me engana, foram já muitas noites de hierofanias nesta cidade, senti desde o primeiro dia a beleza da Julieta nas noites de vapor místico e azul entre os traços livres do cerrado e a eternidade da cosmogonia do Plano de Brasília.
Peço perdão mais uma vez. Extenuado, há tempo vejo a paixão escondida por trás das sinuosidades, da intimidade e derramamento de Brasília que o espírito doce e machucado do artista não conseguiu suprimir numa homenagem à beleza e ao seu amor.
Em 1980, nós, jovens estudantes venezuelanos, em horas de ebulição espiritual, falávamos sobre Brasília como quem conversava sobre um animal empalhado. Nunca pensamos que nos imponderáveis da vida do seu idealizador repousava a flor de um segredo. Lúcio Costa foi embora discretamente, sem confessar sua dor e ao mesmo tempo nos deixando o testemunho da grandeza da sua paixão pela arte, pela beleza e por Julieta. Obrigado Mestre Lúcio Costa.
Eladio Oduber
Imagem: Manacá / Eladio Oduber . Abril 2007
4 Comments:
Eládio, que lindo texto!!
Acabo de voltar de Brasília, hoje - fiquei emocionado com o que li.
Obrigado!
Companheiro,
eh nas estradas da vida que a gente se perde e se acha, ne...
Quantos anos Lucio Costa viveu atado a estrada que levou seu amor?
Toda vez que volto a Brasilia, de aviao, e a vejo esparramada, limpa, clara ... choro, de alegria, de prazer ao contemplar essa grande obra de arte.
Obrigado, seu texto captou a beleza, a dor e a poesia de Lucio Costa em Brasilia.
Abrazzos
Dom Eladio Oduber!!! Como estas hombre?? Achei voce, onde anda Cecilia?
Abracos!
Não posso tecer um comentário extenso, pra não matar teu texto tão perfeito. Só quero dizer que ele é lindo, lindo, lindo. Virei sempre atrás destes suspiros.
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