Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Sobre a fidalguia e vilania dos acadêmicos e seus objetos de estudo.

Os cientistas e seus temas de estudo necessitam de grupos sociais que os legitimem e apoiem. Isto parece elementar mas, muitas vezes esquecemos este fato.

Alguns cientistas “aproveitam” as circunstâncias em que viveram e até conseguem “trapacear” seus mecenas. Foi o caso de Charles Lyell, fundador da geologia que conseguiu dinheiro de grupos nobres e religiosos ingleses no século XIX para fundar clandestinamente uma ciência demolidora do “creacionismo”; principal fundamento filosófico dos próprios patrocinadores.

A fazanha de Lyell pouco se repetiu na história das ciências. Se pensarmos nas ciências sociais podemos observar como seus fundadores sobreviveram em circunstâncias variadas e paradoxais.


Augusto Comte, por exemplo, conseguiu edificar sua obra graças ao mecenato dos seus discípulos. É conhecido o estado de penúria material em que viveu este pioneiro da sociologia, que contou, durante a melhor fase da sua vida intelectual, com o apoio generoso de mecenas ingleses articulados por John Stuart Mill que era admirador de Comte.

Émile Durkheim, teve que utilizar seu patrimônio pessoal e o de seus colaboradores para driblar a ausência de patrocínio do Estado, numa França em que as oportunidades no sistema administrativo e educacional para pessoas com experiência em pesquisas sociológicas eram inexistentes.

Karl Marx, expulso de vários países, enfrentou, durante toda sua vida, contínuas dificuldades financeiras que tentou superar com o trabalho de jornalista. É amplamente conhecido o mecenato oferecido por Frederich Engels, que lhe garantiu, a partir de 1869, uma renda anual.

Max Weber, professor das Universidades alemãs de Friburgo e Heidelberg, faz uma carreira curta e é afastado por, aproximadamente, dezenove anos da vida ativa universitária, se aposenta definitivamente no ano de 1907, depois de ter recebido uma herança familiar, o que lhe permite dedicar-se à pesquisa científica.

No Brasil. Gilberto Freyre nasce em “berço de ouro”. Ele foi um menino de engenho, que cresceu numa “casa grande”, com “várias salas cheias de quadros de eminentes pintores e estantes que guardavam 20.000 volumes, muitos deles raros e outros raríssimos”. Freqüentou o jardim de infância no colégio americano Gilreath, teve aulas de pintura, e professor particular de inglês, francês e grego.

Sendo já autor consagrado mundialmente, Freyre polemizou com a sociologia produzida pelo grupo da USP chamando-a de “tecnicista ou “logicista”. Este grupo era liderado por Florestan Fernandes.

Gilberto Freyre viveu o suficiente para conhecer, também, as críticas que a nova geração de sociólogos fizeram da sua sociologia. Ele era acusado de fazer uma “sociologia demasiado literária” e para contra atacar utilizou o “argumento de autoridade”. Falou do prestígio que sua obra tinha na Europa e nos Estados Unidos.

No fundo esta polêmica tinha um conteúdo de classe, estavam sendo discutidos os estilos de se fazer sociologia dentro de diferentes condições de patrocínios.

Por outro lado, Florestan Fernandes era de origem muito humilde. Sua formação acadêmica aconteceu no meio de inúmeras privações materiais, realizando trabalhos que iam desde ajudante de alfaiate a garçom. Hoje podemos considerá-lo, de certa forma, o Charles Lyell brasileiro. Ao lado de outros cientistas sociais da USP conseguiu “deixar de fora” os “sponsors” da sociologia no Brasil, driblando as “expectativas práticas” das lideranças que não tinham as formas de controlar os interesses da ciência produzida nesta instituição.

Posteriormente os discípulos de Florestan Fernandes afastaram-se do mestre aparentemente por diferenças teóricas, entretanto as razões eram também econômicas. Tratava-se da aceitação ou não de determinadas condições de patrocínio para a ciência social brasileira. Florestan não concordava em receber recursos da Fundação Ford, porque achou inaceitável trabalhar com recursos de um pais que apoiava a ditadura no Brasil.

Florestan Fernandes também polemiza com o sociólogo Guerreiro Ramos e com seus discípulos Fernando Henrique Cardoso e Otavio Ianni. Esta discussão, que, durante muitos anos, foi tida como uma discussão política ou metodológica revela um momento da sociologia brasileira em que os cientistas sociais estão confrontando concepções, formas e maneiras de agir relacionadas a conquistas de aliados e constituição de tecidos sociais, a fim de propiciar as condições materiais de produção da ciência social no Brasil.

Florestan Fernandes tinha como principal modelo o seu professor Roger Bastide que foi considerado um “antimediático” por excelência, que não quis perseguir a visibilidade e a hegemonia nos círculos da moda acadêmica. Em resumo, Roger Bastide foi um sociólogo erudito dedicado mais a seu trabalho acadêmico que à construção da sua imagem.Quem sabe Bastide também espelhou-se em Marcel Mauss, que já tinha perdido patrocínios da Fundação Rockefeller, em função da pouca tradição de pesquisas empíricas na França.

Em fim, a que lugar nos leva esta genealogia do patrocínio? No meu entender, ao reconhecimento da fidalguia ou vilania dos objetos de estudo e da postura igualmente aristocrata ou plebéia dos acadêmicos.

Para manter o estilo aristocrático de pensar e agir, as ciências sociais, inspirados na filosofia, cultivaram, durante quase 200 anos, a prática do "sacerdócio", isto é, o ócio consagrado aos deuses. Weber, talvez, diria: um ócio, consagrado, também, aos demônios. A palavra ócio, no grego antigo, sxolé, dá origem a outra palavra: escola. Na sociedade ocidental antiga, os homens sábios e ociosos fugiam do trabalho manual para dedicar-se à contemplação, especulação e conquistas da alma e do intelecto. Para isto, fundavam ou freqüentavam escolas.

A mais arquetípica das nossas escolas foi a Academia de Platão. Construída numa aprazível área arborizada a pouca distância ao noroeste de Atenas. Platão, com dinheiro da herança paterna, adquiriu, na época, um ginásio e uma propriedade, onde construiu a Academia que foi concebida como um seminário Filosófico, com o objetivo de preparar um novo tipo de dirigente para o mundo Grego. Havia, no prédio, salas de leitura, residências e um refeitório comum. Foi organizada como um grupo de culto, o que tornava sócios os seus membros. Com isto, se pretendia perpetuar a idéia durante muitos anos.

É desse tronco filosófico, “culto”, “ocioso” e consagrado aos deuses, que as ciências sociais herdam sua vocação critica e "monástica"; consequentemente, estas sempre tiveram a necessidade de possuir redes de auxílio que a financiassem e, ao mesmo tempo, guardassem distância do “mosteiro”.

Ciências nobres e ciências plebéias, acadêmicos fidalgos e vilãos. Os objetos de estudo assumem o rosto dos seus aliados.

Certos acadêmicos são vítimas dos seus próprios paradoxos. Tendo cultivado a “estética da nobreza” olham para os próprios contracheques com vergonha, estes, mais parecem um “nada consta”. Nesse canteiro floresce o ressentimento, a chamada “vingança imaginária” que deteriora e decompõe todos os valores.

Nada há de mais triste e lamentável que a cabeça de um fidalgo no corpo de um vilão com um esquálido contracheque na carteira . Esta sim é uma personagem perigosa, não conhece limites, “sacia sua sede com água salgada, nenhuma quantidade de democracia lhe basta” os objetos de estudo que não estão carimbados com brasão do avoengo acadêmico lhe parecem fúteis, perdas de tempo, banais, sem relevância. A esta personagem, sinceramente, dou as costas, obviamente, com muito medo...

Eladio Oduber

Conferir:

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

ARRUDA Do NASCIMENTO, Maria Arminda. “Trajetória singular: o acadêmico Florestan Fernandes. In: MARTINEZ, Paulo H. (Org.) Florestan ou o sentido das coisas. São Paulo: Boitempo, 1998.

BRAGA SANTANA de Maria Lúcia. A Sociologia pluralista de Roger Bastide: um itinerário. Dissertação de mestrado em Sociologia, Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, 1994. p. 110 Brasília, 1968 p. 31

FERNANDES R. Heloisa. “Amor aos livros: reminiscências de meu pai em sua biblioteca” In: FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1977

FREYRE, Gilberto. Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília; Editora Universidade de Brasília, 1968.

GUIMARÃES, Mário ; SHOZO, Montoyama. (org) História das Ciências no Brasil. São Paulo:
EPU: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979-1981.

IANNI, Otávio. (org.) Florestan Fernandes. São Paulo : Editora Ática, 1991.

LATOUR, B. Ciência em Ação. São Paulo: Editora Unesp, 2000.

MADEIRA, Angélica ; VELOSSO, Mariza . Leituras Brasileiras. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 2000.

MICELI, Sergio. (org.) História das ciências sociais no Brasil, vol. II. São Paulo: Editora Sumaré: FAPESP, 1995.

NOGUEIRA ,Oracy; "História das Ciências sociais no Brasil”. In: GUIMARÃES, Mário ; SHOZO, Montoyama. (org) História das Ciências no Brasil. São Paulo: EPU: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979-1981.

ODUBER PALENCIA, Eladio Antonio. Do sociólogo erudito ao sociólogo de mercado:patrocinio e redes de legitimação na sociologia brasileira. Brasília, 2004. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Sociologia, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade de Brasília.

OLIVEIRA. Luci Lippi de. “As ciências sociais no Rio de Janeiro” In: MICELI Sergio. (org.) História das ciências sociais no Brasil, vol. II. São Paulo: Editora Sumaré: FAPESP, 1995.

PEIRANO MARIZA G. S. “Artimanhas do acaso” In: Série antropológica [sl. sd.] nº 93.

PICÓ, Josep. “El protagonismo de las fundaciones americanas en la institucionalización de la sociología (1945-1960)” In: Revista Papers, Universitat de València. Departament de Sociologia nº 63/64, 2001.

RAMOS, A. Guerreiro
. Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo. Rio de Janeiro:Editorial Andes, 1954.

SCHWARTZMAN, Simon. “As Ciências Sociais nos anos 90” In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 6, nº 16, julho de 1991.


Imagem:
www.hystoria.hpg.ig.com.br

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

além das guerras intestínicas? que sejam! intestinos cheios! intestinos vazios! nada mais! bla bla bla! nada muda. tudo se transforma? quantas idéias palavras teorias visões de mundo! quantos mundos realidades experiências! variações? sobre um mesmo tema! filosofia sociologia antropologia arte! física química eletrônica engenharias! psicologias medicinas! direito administração turismo! comida? quem tem fome? dar = ordenar! receber = servir! dinheiro = comida! patrocínio = pai = patrão cínico! livre pensar = livre comer; paleolítico! cacemos! coletemos! ou sejamos comida: entramos temperadas coloridas saborosas; saímos! merda!

2:14 AM  
Anonymous Anônimo said...

Faço Ciências Sociais na UFG e estou fazendo um projeto de pesquisa sobre a profissão de sociólogo em Goiânia e gostaria de saber se a sua tese, inditulada "Do Sociólogo erudito ao Sociólogo de mercado", encontra-se on line ou em alguma publicação.

Obrigada.

Luciene Correia
luciene_cso@yahoo.com.br

5:43 PM  

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