Palíndromo
Jean Guillerme: que te traz aqui a essa hora?
Roble: mil perdões, mestre, depois de tanto me sentir perturbado nos últimos dias, decidi vir a lhe perturbar. Você conhece aquele... o inominável?
Jean Guillerme: aquele? ... é bom dar-lhe o nome...
Roble: sim, o Satanás...
Jean Guillerme: sim, já o encontrei uma manhã úmida de verão... O encontrei como sempre se lhe encontra, inesperadamente, num corredor. Pegou-me pelo braço...
Roble: como ele é?
Jean Guillerme: para que queres saber?
Roble: quero saber mestre, por favor...
Jean Guillerme: o que você quer saber?
Roble: tudo!
Jean Guillerme: tem braços delicados, frágeis, amorosos que comandam mãos da mesma natureza.
Roble: e como são seus olhos...
Jean Guillerme: incomensuravelmente negros com uma sutileza vermelha no fundo...Os pintores antigos descobriram este segredo quando tinham que usar o negro na paleta. Assim é como esta cor, adquire a temperatura e o drama que lhe pertence.
Roble: lembra do seu rosto?
Jean Guillerme: sim...
Roble: então me diga... como ele é?
Jean Guillerme - respira: o rosto do Satanás na luz do dia tem o tom que o mármore rouba à luz indireta da noite. Seus movimentos produzem pequenas fendas que, de tão emocionantes, retiram de você toda força.
Roble: por favor, fale da boca...
Jean Guillerme: prefiro falar do beijo...
Roble: por favor...
Jean Guillerme: beijar o Satanás é como beijar os campos de trigo com corvos. Ora os corvos, ora o trigo. Todos seus gestos são belos, admiráveis, como se um Deus dirigisse internamente suas ações. Quando tentas saber o que ele pensa vem aos teus olhos um caleidoscópio.
Roble: e o viste despido...
Jean Guillerme: sim...
Roble: por favor...
Jean Guillerme: prefiro não falar...
Roble: mestre, faço-lhe este pedido!
Jean Guillerme: não posso falar... a essa altura os corvos que beijei eram donos dos meus olhos
Roble: por favor...
Jean Guillerme: não se pode falar sem ofender toda a amabilidade e beleza de um antílope de cristal, como você quer que eu fale de um antílope de cristal? é isso, só isso...
Roble: mestre, acho que Deus abandonou meu corpo!
Jean Guillerme: pior do que isso Roble, é Satanás abandonar-te...
Roble: como você sobreviveu?
Jean Guillerme: ... perdi minha serenidade para sempre...
Roble: e, agora ?
Jean Guillerme: procuro caminhar, com o rosto baixo, buscando aquele momento inesperado que propiciou o encontro...
Roble: deu algum resultado?
Jean Guillerme: sim, tenho encontrado bastantes guimbas de cigarro!
Roble: mestre...
Jean Guillerme: Roble, vai em paz, tenha bons sonhos... tudo isto que contei foi só isso, um pavoroso e delicioso sonho.
Eladio Oduber
Conferir: o Cebinho da 407 Norte, às 16:00 de uma tarde qualquer. Falar para o Igor servir uma cerveja gelada. Acenda um cachimbo.
PS: Aos meus dedicados amigos Luciano e Fernando. Este último sabe de cor o poema que desejo na lápida do meu túmulo.
Desenho: Eladio Oduber - carbon em papel
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