Sobre pesquisa e outras infâmias

Diário de campo de dois espectadores e um pródigo bucaneiro.

domingo, dezembro 05, 2010

Palíndromo


Roble: boa noite mestre... Desculpe tè-lo acordado...

Jean Guillerme: que te traz aqui a essa hora?


Roble: mil perdões, mestre, depois de tanto me sentir perturbado nos últimos dias, decidi vir a lhe perturbar. Você conhece aquele... o inominável?


Jean Guillerme: aquele? ... é bom dar-lhe o nome...


Roble: sim, o Satanás...


Jean Guillerme: sim, já o encontrei uma manhã úmida de verão... O encontrei como sempre se lhe encontra, inesperadamente, num corredor. Pegou-me pelo braço...


Roble: como ele é?


Jean Guillerme: para que queres saber?


Roble: quero saber mestre, por favor...


Jean Guillerme: o que você quer saber?


Roble: tudo!


Jean Guillerme: tem braços delicados, frágeis, amorosos que comandam mãos da mesma natureza.


Roble: e como são seus olhos...


Jean Guillerme: incomensuravelmente negros com uma sutileza vermelha no fundo...Os pintores antigos descobriram este segredo quando tinham que usar o negro na paleta. Assim é como esta cor, adquire a temperatura e o drama que lhe pertence.


Roble: lembra do seu rosto?


Jean Guillerme: sim...


Roble: então me diga... como ele é?


Jean Guillerme - respira: o rosto do Satanás na luz do dia tem o tom que o mármore rouba à luz indireta da noite. Seus movimentos produzem pequenas fendas que, de tão emocionantes, retiram de você toda força.


Roble: por favor, fale da boca...


Jean Guillerme: prefiro falar do beijo...


Roble: por favor...


Jean Guillerme: beijar o Satanás é como beijar os campos de trigo com corvos. Ora os corvos, ora o trigo. Todos seus gestos são belos, admiráveis, como se um Deus dirigisse internamente suas ações. Quando tentas saber o que ele pensa vem aos teus olhos um caleidoscópio.


Roble: e o viste despido...


Jean Guillerme: sim...


Roble: por favor...


Jean Guillerme: prefiro não falar...


Roble: mestre, faço-lhe este pedido!


Jean Guillerme: não posso falar... a essa altura os corvos que beijei eram donos dos meus olhos


Roble: por favor...


Jean Guillerme: não se pode falar sem ofender toda a amabilidade e beleza de um antílope de cristal, como você quer que eu fale de um antílope de cristal? é isso, só isso...


Roble: mestre, acho que Deus abandonou meu corpo!


Jean Guillerme: pior do que isso Roble, é Satanás abandonar-te...


Roble: como você sobreviveu?


Jean Guillerme: ... perdi minha serenidade para sempre...


Roble: e, agora ?


Jean Guillerme: procuro caminhar, com o rosto baixo, buscando aquele momento inesperado que propiciou o encontro...


Roble: deu algum resultado?


Jean Guillerme: sim, tenho encontrado bastantes guimbas de cigarro!


Roble: mestre...


Jean Guillerme: Roble, vai em paz, tenha bons sonhos... tudo isto que contei foi só isso, um pavoroso e delicioso sonho.



Eladio Oduber


Conferir: o Cebinho da 407 Norte, às 16:00 de uma tarde qualquer. Falar para o Igor servir uma cerveja gelada. Acenda um cachimbo.

PS: Aos meus dedicados amigos Luciano e Fernando. Este último sabe de cor o poema que desejo na lápida do meu túmulo.

Desenho: Eladio Oduber - carbon em papel