Vivendo num mundo super-equipado
Foi-se o tempo em que o vento nos mares determinava o rumo da navegação. Assim como faz tempo que a demora das viagens não depende mais do humor dos cavalos. Se alguma coisa pode-se dizer sobre a diferença entre nós e os “antigos” mais próximos e a constante e paulatina ilusão de controle sobre os chamados “imponderáveis da vida cotidiana”.
Dentre eles, os surpreendentes viesses da alma humana.
Arlie Hochschild mostrou nas suas pesquisas o processo de treinamento dos sorrisos das comissárias de bordo da Delta Airlines descrevendo, além do esforço físico, o “esforço emocional” exigido pela empresa. As funcionárias chegaram a confessar em entrevistas que o sorriso “estava nelas, mas não era delas”. A empresa tinha lhes roubado a "alma".
Outro paralelo pode ser feito com os objetos que compramos diariamente. Os motivos das nossas escolhas são muitas vezes orientados por fatores que desconhecemos completamente.Quem sabe se analisarmos a "alma" destes objetos descubramos alguma coisa?. São estes aspectos "imponderáveis" da alma dos objetos que o chamado "mercado" controla primorosamente.
Basta olhar com atenção o desenho de algumas mercadorias de consumo cotidiano para perceber que há tempos impõe-se uma estética do “sobre-dimensionamento” nestes objetos.
Compramos, por exemplo, sapatos feitos e desenhados para quem vai escalar montanhas ou caminhar em trilhas íngremes. As cidades no Brasil e outras partes do planeta estão cheias de automóveis preparados para o rally Paris-Dakar. Muitas das nossas roupas poderiam ser usadas em filmes de Indiana Jones e assim por diante.
Esta percepção sobre a hiper-dimensão de aspectos simbólicos no capitalismo já tinha sido apontada por Theodor Adorno quando analisava o uso de uma estrutura complexa como é uma orquestra sinfônica para a gravação de um tema de três minutos num comercial de sabonete.
A sobre-dimensão de elementos “intangíveis” no mundo atual chegou ao nível das representações. Principalmente nas representações cartográficas das cidades.
Isto devemos à internet. O Google Earth, por exemplo, nos oferece escalas das cidades que coloca o internauta na situação virtual de dominação espacial e geográfica de um piloto de guerra. Existe até um recurso por meio de atalhos no teclado em que o usuário passeia-se pelos céus de qualquer cidade num Caça F16 que é um avião de bombardeios.
Os detalhes das fotografias feitas pelos satélites disponibilizam detalhes que são para a maioria dos internautas-espectadores desnecessários para as demandas do dia a dia.
Vemos como no âmbito das representações estamos servidos de um hiper-realismo que, em verdade, não necessitamos.
Assim como acontece com os celulares com GPS, relógios com manómetros analõgicos, automóveis, tênis, roupas e canivetes multiuso aparelhados de lanternas e bússolas.
Quanto poder ilusório queremos consumir?
Quanto poder “real” estamos transferindo para nossos Big-Fathers?
O tempo nos mostrará um dia o tamanho e a dimensão da ignorância construída a milhões de mãos.
Abraços do Eladio
Conferir: Howard Becker no livro Falando da Sociedade. Anthony Giddens no livro Sociologia, Theodor Adorno em algum parágrafo da coleção “Os Pensadores” que agora tenho preguiça de olhar. E, principalmente, é útil conversar com meu amigo Fernando Campos Leza para aprender um pouco sobre divagações e delírios em recursos informáticos.
Imagem: Catedral submersa. Eladio Oduber / Lápis grafitti sobre papel comum
3 Comments:
Eládio, muito boa sua reflexão. Eu repito aqui um trecho de um texto meu, lá da sombra da mangueira, que acho que encontra esse mesmo ponto que você destaca (não sei se você está de acordo): Somos livres para fazer exatamente o que já foi eleito como modelo de conduta, para imitar o comportamento da classe dominante, para assimilar os símbolos de poder e dominação, para nos inscrever na realidade segundo os padrões aceitáveis e determinados pela cultura de massas, enfim, somos livres para “escolher” o tênis Nike.
Beijos da Beatriz
Que bom que você trouxe o seu texto, Bia! Você trouxe uma outra forma de falar sobre um incômodo que estamos - muitos de nós - sentindo. Uma forma esteticamente muito legal. Acho que o que incomoda é um "endeusamento" do indivíduo. Quero dizer que o indivíduo está sendo medido por uma métrica inflacionada, inflada. Você não concorda? Bj
Querido Ela parece que no terminarà nunca de escribirse la historia de los excesos ajenos.
Es raro que podamos ponderar los propios (hasta podemos excedernos en la moderaciòn)
Mi madre cuando se la acusaba de exagerada pretendìa excusarse un poco con que la exageraciòn es privilegio de los apasionados. Yo a veces sentìa que necesitaba proveerse de una historia que la contara, que la delineara.
La misma ingenuidad que da vida a esos
objetos sobredimensionados que describìs.
Me gustarìa no sentir que estamos siendo vìctimas constantes de intentos de engaño, pero hemos visto aulas llenas de gente estudiando tècnicas especìficas para eso.
A veces me harto de que nos metamos tanto unos con otros, de que nos usemos asì.
Amanece.
te mando un abrazo!
Postar um comentário
<< Home